APRESENTAÇÃO DO LIVRO

Trabalho em andamento, em breve nas livrarias

Duas observações que me fizeram escrever este livro

  1. As empresas são extremamente dependentes dos comportamentos e desempenhos de pessoas, embora pouco ou nada saibam sobre os processos inconscientes que determinam esses comportamentos e desempenhos.

  2. Uma empresa raramente pode ser responsabilizada sozinha pelos transtornos psíquicos de alguém, mas suas lideranças podem contribuir para que a cultura interna e o tratamento dado a elas não predisponham ou agravem esses quadros.

A angústia segue a força da gravidade

Tomo emprestado o jargão corporativo “top-down” para integrar o título do livro e sintetizar o problema que a escrita da obra procura enquadrar e resolver. O problema é o adoecimento mental nas empresas, visto de uma perspectiva estratégica. O tema tira o sono não apenas dos RHs, mas também dos empresários. Crises reputacionais podem ser deflagradas por meio de denúncias e repercussão de casos de adoecimentos graves ou atos extremos, sobretudo em consequência de relatos ou mesmo postagens nas redes sociais mostrando como as pessoas foram tratadas e cobradas por seus desempenhos e resultados ou, simplesmente, pelo seu jeito de ser. Ocasiões em que a empresa fica exposta a perdas de valor e atratividade junto a investidores, talentos, clientes e demais públicos. E, especialmente contra as lacrações e cancelamentos promovidos pelos “tribunais das redes sociais”, raramente há meios de se defender no mundo “off”.

Olhando historicamente, os transtornos e adoecimentos psíquicos no contexto corporativo não são uma novidade. Competição acirrada, ambiente regulatório, transformações sociais, fenômenos ambientais e impactos da tecnologia sempre exerceram pressão sobre as empresas. E, desde sempre, essa pressão recaiu sobre as pessoas, pois são esforços e decisões de pessoas que, afinal, constituem as empresas. O que mudou foi apenas o perfil do adoecimento. Houve um deslocamento do trabalho corporal — emprego de força física e braçal repetitiva e extenuante — para o mental, devido à sobrecarga de demanda cognitiva e mnêmica para dar conta do crescimento exponencial de novos conhecimentos somado às turbulências e incertezas do mundo contemporâneo.

Ironicamente, os avanços tecnológicos libertaram o homem do adoecimento orgânico, grosso modo, evidentemente. Porém, devido à velocidade e frequência com que passaram a ocorrer nas últimas décadas e às transformações imprevisíveis que engendram, esses avanços imprimiram uma demanda alucinante por inovações disruptivas de forma contínua, criando condições silenciosas para a irrupção da angústia e do sofrimento psíquico dos mais diversos.

De qualquer maneira, os avanços tecnológicos não serão detidos. Eles servem ao desenvolvimento econômico, sociocultural e ambiental, dos quais as empresas são um dos principais vetores. Logo, o que nos resta é lidar com seus efeitos e enquadrar o problema da saúde mental sob a perspectiva que chamei de estratégica, ou seja, colocar o problema na mesa do mais alto escalão da empresa para evitar tratar o tema da mesma maneira que se lida com as doenças laborais que se inscrevem no corpo físico.

Por que fazer essa distinção?

Não estamos diante de problemas de “ortopedia” com evidências objetivas a serem corrigidas ou consertadas com medicação, fisioterapia ou procedimento cirúrgico, mas de sintomas psíquicos formados por conflitos inconscientes que raramente apresentam marcadores biológicos detectáveis em exames laboratoriais. Apesar dessa diagnóstica em grande parte “inobservável”, esses sintomas geram tantos impedimentos na vida quanto uma dor de dente ou um distúrbio gastrointestinal grave. A coisa fica mais complexa quando pensamos em doenças psicosomáticas, para as quais não se encontra causa orgânica alguma. Mas não precisamos ir tão longe.

A angústia e os demais sintomas psíquicos geradores de perdas que proponho abordar e tratar são especificamente aqueles derivados das dinâmicas relacionais pressionadas pelo contexto do trabalho que descrevi acima e que elevam a propensão a gerar uma cultura organizacional permanentemente “nervosa”.

Por isso, ouso afirmar que, contemporaneamente, “não adoecemos do trabalho, mas das relações ‘de’, ‘com’ e ‘no’ trabalho”. O que não é muito distinto do que acontece na vida fora do trabalho, nas relações onde o poder e a influência raramente são simétricas: família, amizade, estudos e por aí vai. As relações de trabalho que se tornam ansiogênicas são, em grande medida, aquelas que decorrem das falas e atitudes das altas lideranças. Dada sua força simbólica e poder real de influenciar e decidir o destino de muitos, os altos líderes acabam, pelo exemplo de seus atos ou por suas medidas “top-down”, disseminando a angústia da qual, e isso é fundamental destacar, são presas preferenciais.

Importante ressaltar que não se trata de colocar o adoecimento mental dos colaboradores na conta das lideranças. Ao contrário do que é comum pensar, as lideranças do topo da pirâmide estão muito mais sujeitas a adoecimentos psíquicos, inclusive os mais graves. Apesar de projetarem no imaginário a ideia de solidez e invulnerabilidade, quanto mais alto na hierarquia, menos oxigênio disponível e maior a vertigem das lideranças. Basta considerar os riscos envolvidos na tarefa de tomar decisões que impactam os resultados globais de uma empresa, sobretudo sob o complexo ambiente de negócios atual.

A convicção de alçar o problema da saúde mental às camadas estratégicas foi me ocorrendo aos poucos, ao longo de 15 anos. Dediquei mais de 6.000 horas de escuta e análise com empresas das mais diversas indústrias, origens, tamanhos, composições societárias e modelos de negócio. Segui nessa jornada com o auxílio do ferramental psicanalítico, segundo o qual o tratamento é, ao mesmo tempo, um método de pesquisa e investigação. Ambos são indissociáveis e fazem os conceitos teóricos avançarem com respaldo na prática clínica no consultório. No meu caso, o setting analítico foi estendido às empresas, onde empreguei o método pesquisa-tratamento não apenas junto aos empresários e às altas lideranças, mas àqueles com os quais os primeiros exercem o poder.

Graças a isso, pude apreender “in loco” que os dispositivos que estava concebendo e aplicando só teriam alguma chance de produzir recuos significativos de mal-estar se abordassem os conflitos inconscientes “dos” e “entre” os membros do topo da hierarquia e, prioritariamente, do líder dos líderes. Uma incursão muito delicada e antinatural, dado, como já mencionei, o montante de ideais de infalibilidade e invulnerabilidade característicos dessa camada de poder nas corporações.

Afinal, o que é um conflito inconsciente? Resumidamente, é um desejo ou uma memória traumática que foi expulsa da consciência. Isso acontece porque o mero ato de lembrar reaviva uma quantidade de dor (no caso de um trauma) ou de angústia (no caso do desejo), dos quais se quer evitar o “ressentir”. O desejo, especificamente, é reprimido porque a iminência de sua realização — ou apenas a fantasia de sua realização — entra em conflito, consciente ou inconsciente, com um preceito moral, religioso ou crença qualquer.

Mas o fato de ter se tornado inconsciente não significa que deixou de querer se tornar consciente. A dor do trauma reclama por uma elaboração para atenuar o terror da sua lembrança, e o desejo segue sua busca por satisfação. É da tensão entre essas duas forças, uma que reprime e outra que anseia por cidadania no consciente, que surge o conflito. Enquanto não for elaborado, o conflito inconsciente se manifestará por diversos meios, sendo o sonho a “via régia” pela qual o desejo reprimido se realiza, ainda que disfarçadamente — e é por isso que precisa ser interpretado. Já a dor traumática se expressa no sono por meio de sonhos de angústia ou pesadelos, comprovando a necessidade psíquica de seu enfrentamento.

Esses conflitos inconscientes operam nas relações interpessoais e intergrupais em suas vastas e infinitas configurações. Estão na base da vida humana e em suas produções culturais como literatura, cinema, dramaturgia, política, educação e economia. Sua origem? Nasce com o nascimento do humano e nunca o abandona, a saber: as relações familiares. Elas constituem a matriz originária das nossas relações interpessoais, em um tempo quando nosso aparato de linguagem e avaliação ético-moral ainda não estava desenvolvido, momento em que sequer tínhamos uma percepção do nosso eu como unidade separada dos nossos cuidadores. Período em que recebemos os primeiros e mais marcantes gestos incondicionais de amor e proteção junto das mesmas fontes de onde, aos poucos, começavam a chegar também os primeiros gestos opostos: proibições, restrições, ditames comportamentais e punições.

Basta traspor a experiência desse contraditório “amor-coerção” para as relações profissionais e logo percebemos como as relações de poder potencializam o retorno inconsciente das nossas experiências fundantes por meio da seguinte série de pares de opostos: pertencimento-rejeição, cooperação-disputa, encorajamento-insegurança, admiração-desprezo, tolerância-severidade. Desses derivados simbólicos do “amor-coerção” passaremos o resto da vida a buscar ou nos afastar, mas sem que tenhamos total consciência ou domínio sobre quando e como eles se reapresentarão.

Podemos associar essas formas ambíguas e ambivalentes de perceber e reagir emocionalmente à realidade à imagem da atividade vulcânica. Às vezes, o vulcão parece exalar uma fumacinha sugestiva do seu estado em repouso para, no instante seguinte, nos surpreender com a erupção violenta do seu magma devido à pressão interna exercida pelo magma que “repousa” sob a crosta terrestre. Analogamente, em nosso mundo interno, podemos experimentar uma liberação impetuosa de algo represado em camadas profundas e antigas, sem que tenhamos domínio sobre o porquê, quando e como isso ocorrerá. O que nos diferencia do fenômeno geológico são as “camadas atuais” do nosso psiquismo. Por serem mais maduras, somos capazes de acessar e dar um encaminhamento razoável ao material que desperta do inconsciente, ainda que não durante ou imediatamente após a súbita irrupção.

Com essa breve introdução, espero ter deixado clara a minha intenção de oferecer com este livro um conhecimento menos perecível sobre o tema da saúde mental nas empresas, pois me apoio em um substrato com mais de 120 anos de história e em contínua renovação que é a psicanálise. Por isso, resisti à tentação de seguir uma certa tendência em livros sobre líder e liderança de adjetivar esses substantivos no título. Evitei, por exemplo, propor algo como “O Líder Psicanalista” ou mesmo um nome que soaria até coerente com a minha abordagem: “O Líder Psicanalisado”. Evitei.

Confesso aqui uma ambição. Quero que este livro seja duplamente relevante para dois públicos especiais para mim. Por um lado, empresários, empreendedores e executivos e, por outro, meus pares psicanalistas. Os desafios para isso foram 1) Como não abusar do psicanalês e me distanciar do primeiro grupo de leitores? 2) Como ser atrativo para o segundo grupo que talvez sinta falta do enquadre e léxico psicanalíticos?

Resolvi tal dilema convidando Pablo Castanho, professor livre-docente do departamento de psicologia da USP e uma autoridade internacional em psicanálise institucional e de grupos, para participar ativamente deste livro. O Pablo irá escrever os “interfácios”, o que, até onde o Google sabe, não existe, pois o inventamos. Combinamos que ele ficaria completamente livre para capítulo a capítulo intervir no texto, abrindo espaços nos pontos que quisesse para trazer questões, formular críticas, clarificar pensamentos, estabelecer paralelos com as concepções institucionais e de grupo de extrações inglesa, francesa e outras do seu vasto repertório. A finalidade é ampliar a força e o alcance das ideias com seus apontamentos e conexões com outros autores com os quais dialoga.

Combinamos também que eu só tomaria conhecimento dos “interfácios” após a publicação do livro, junto com os leitores. Mais que tudo, aposto com esse gesto no poder da confiança como valor fundante de qualquer processo cooperativo voltado para realizações transformadoras. Premissa que deixo aqui como spoiler do que o leitor encontrará quase como uma síntese de um ideário e práticas de liderança que poderiam nortear a disseminação de um projeto de “Saúde Mental Top-down”.

Sobre mim e o que me levou a essa construção

Foi no momento de escolher uma faculdade, ao sair da adolescência, que enfrentei o meu primeiro top-down. Na verdade, não foi o primeiro, mas o primeiro não mais na condição de bebê ou criança, a quem não resta alternativa senão obedecer aos desígnios que vêm de cima, dos genitores e cuidadores.

O que eu tinha em mente era estudar cinema ou psicologia, mas, a pedido e sob certa pressão do pai, capitulei e fui cursar administração de empresas, além de trabalhar na empresa da família em dificuldade.

A formação em administração e o trabalho com o pai quase me levaram a deprimir; afinal, eu havia renunciado a duas áreas de enorme interesse há muito em minha breve existência de então. Mas a busca por uma psicoterapia me ajudou a enxergar mais além da queixa inicial de que a “imposição paterna no direcionamento da minha profissão” havia sufocado meus sonhos.

Por meio do processo psicanalítico, consegui entender a gênese inconsciente daquele “aceite forçado”. Eu vislumbrara naquela decisão a oportunidade de lidar com a figura do pai, que eu experimentava com muita ambiguidade: entre o autoritário e a autoridade. A chance seria de eu encarar a relação de trabalho com o pai como um “campo de provas” para eu me fortalecer e enfrentar outros “aceites forçados” frente a outras figuras de autoridade que poderiam vir a cruzar minha vida afora.

A análise me acompanhou por anos até chegar ao âmago desse conflito inconsciente. O efeito foi estruturante de uma nova subjetividade. O ciclo na empresa familiar foi concluído, mas as atividades de empreendedor e empresário continuaram por mais de 20 anos em minhas próprias iniciativas, através das quais, conforme previra, consegui vivenciar e ressignificar os afetos atrelados às relações de poder para além de sua manifestação top-down.

O encerramento desse ciclo coincide com o início de outro que, analisados em conjunto, mobilizaram em mim a necessidade de fazer um acerto de contas com o abandono daqueles dois sonhos. O novo ciclo se inicia com a iminência de me tornar pai. Só que, dessa vez, meu movimento não estava mais sujeito a uma autorização top-down paterna, mas a um polo oposto: uma influência reversa, um poder bottom-up, de um filho para um pai. Um poder exercido em um diálogo fantasioso em um distante e derradeiro futuro em que meu filho que estava para nascer me interrogaria:

Pai, você acha que viveu sua vida
em seus próprios termos?
Viveu de acordo com o seu desejo?

Àquela altura, percebi que uma resposta negativa, ainda que justificada pelas responsabilidades e urgências da vida, não seria algo valioso a deixar de exemplo ao meu filho ou a um filho do meu filho. O constrangimento neurótico que o exercício de uma transmissão geracional idealizada causou em mim foi o suficiente para abalar a minha “vida como ela era”. E se houvesse um momento certo para me reconectar com meu desejo, esse momento era aquele, por volta dos 40 anos de idade. Decidi abrir espaço para inventar um eu mais próximo a mim mesmo.

E assim foi. O primeiro acerto de contas foi com o cinema, em especial o cinema documentário. Concluí o percurso formativo com a realização de um curta-documental que, não por acaso, trata a relação pai e filho.

O segundo acerto pendente veio alguns anos à frente e não foi com a psicologia, mas com a psicanálise. A formação inicial — que incluiu o aprofundamento na análise pessoal — me estimulou a olhar para todas as realizações passadas no universo corporativo com as lentes da psicanálise. Essa experiência analítica me levou a um ponto de virada de efeito mais perene. Experimentei uma inesperada reconciliação do administrador-empresário com o psicanalista. As angústias e tormentas vivenciadas naquelas três décadas viriam a se tornar a matéria-prima para o desenvolvimento de uma “clínica corporativa”, concebida ainda nos anos de formação, que viria a se tornar uma empresa homônima.

Proposta do livro

Resumidamente, o livro vai desenvolver argumentos — e ilustrar com exemplos — a favor da seguinte tese: apesar de o bem-estar psíquico dever ser tratado como uma responsabilidade compartilhada, a alta gestão precisa ser a fiadora das iniciativas e o primeiro público a ser beneficiado por elas. Os temas e conceitos atendem ao seguinte programa:

  1. Apresentar como os conflitos inconscientes presentes nas e entre as altas lideranças não escapam de sua origem nas relações de poder e influência das dinâmicas familiares;

  2. Que exemplos de estímulos externos podemos identificar como ansiogênicos e predisponentes de uma angústia que ultrapassa os limites de um sinal preventivo de algo maior e se torna patológica;

  3. Como a angústia, se não devidamente reconhecida, escutada e elaborada nos altos escalões, pode se tornar um passivo, descer hierarquia abaixo e potencializar o adoecimento de parte ou todo o tecido social da empresa;

  4. Por onde começar o trabalho de construção de uma cultura de bem-estar psíquico;

  5. A escalada de vulcões como metáfora da erupção dos conflitos inconscientes (impulsores, contra-impulsores e competências psíquicas).

  6. Escuta permanente nas empresas.

Continua...