TRABALHO EM ANDAMENTO, EM BREVE NAS LIVRARIAS.
Notas introdutórias do autor
1 Quando decidi escrever o livro, todos os conteúdos já estavam prontos, pois eles foram estofando a metodologia da Clínica Corporativa desde seu nascimento, há 15 anos.
O que parecia ser uma facilidade (apenas organizar e atualizar um material disperso) virou uma enorme dificuldade (como cativar não apenas o leitor, mas o próprio escritor que busca no ato de escrever o prazer de explorar, descobrir e conceber coisas novas?).
A resposta veio em uma das minhas sessões de análise. Por que não trazer para o livro os recursos narrativos adquiridos de uma antiga vivência com o cinema documentário? Por que não colocar o leitor dentro do processo de construção do escritor? Fazê-lo testemunha do que tramitou pelos “bastidores mentais” do autor enquanto escrevia? De onde vieram suas referências teóricas? Como lhe ocorreram os próprios desenvolvimentos? Como foi a aplicação na clínica? O que não funcionou e precisou ser reformulado?
Cogitei então narrar o livro como um “documentário literário”. A ideia ganhou força, me cativou e lançou nos riscos da contingência, pois só sabemos se um filme vai funcionar depois de pronto. Assim poderá ser com esse livro. Se chegar ao final da leitura, o leitor levantará da poltrona e seguirá a vida, na melhor das hipóteses achando que valeu o tempo dedicado. Algo parecido e esperado em uma análise.
2 Desejo que este livro seja interessante para dois públicos: empresários, empreendedores e executivos e meus pares psicanalistas. Esse desejo implica em ao menos dois desafios: 1) Como não abusar do psicanalês e me distanciar do primeiro grupo de leitores? 2) Como ser atrativo para o segundo grupo que talvez se ressinta da falta de um léxico mais psicanalítico?
Ocorreu-me então convidar Pablo Castanho, uma autoridade internacional em psicanálise institucional e de grupos e professor livre-docente do departamento de psicologia da USP a participar ativamente deste livro.
O Pablo irá escrever o que batizei de “interfácios”, o que, até onde o Google sabe, não existe. Combinamos que ele ficaria completamente livre para, capítulo a capítulo, entre o prefácio e o posfácio, intervir no texto, abrindo espaços nos pontos que quisesse para trazer questões, formular críticas, clarificar pensamentos, estabelecer paralelos com as concepções institucionais e de grupo de extrações inglesa, francesa e outras do seu repertório. A finalidade é ampliar a força e o alcance das ideias com seus apontamentos e conexões com os autores com os quais dialoga.
Combinamos também que eu só tomaria conhecimento dos “interfácios” após a publicação do livro, junto com os leitores. Mais que tudo, reforço com esse gesto o valor da confiança como fundante de qualquer processo cooperativo.
Prefácio dos Interfácios (Pablo Castanho)
Grande parte da vida da maioria das pessoas é dedicada ao trabalho. Precisamos dele para sobreviver materialmente, mas, em nossa sociedade, também o investimos como caminho de desenvolvimento e realização pessoal. Quantas vezes, ao nos apresentarmos socialmente, fazemos referência à nossa profissão como um dos primeiros elementos que nos definem? Para além da identidade, talvez de modo ainda mais marcante, o trabalho organiza boa parte — senão a maioria — de nossos ideais. Almejamos ser profissionais competentes e reconhecidos, investimos no nosso próprio desenvolvimento constante, tomamos gosto por fazer coisas bem-feitas ou nos orgulhamos pela carga que conseguimos levar. A relação de nossa sociedade com o trabalho não é exatamente saudável, mas, por enquanto, é a que temos. Se podemos e devemos sonhar com mudanças nesta esfera, temos que lidar com o que temos. Não me parece possível pensar o sofrimento das pessoas na contemporaneidade sem nos determos, de algum modo, em suas atividades laborais. E, para grande parte de nós, trabalhar significa conviver com corporações, independentemente do vínculo formal que possamos ou não ter.
A clínica psicanalítica precisa se haver com a dimensão laboral. Há precedentes nos quais nos apoiar. Em especial, penso na psicodinâmica do trabalho, de Christophe Dejours. Ao propor que a atividade laboral nunca é neutra para a saúde das pessoas, podendo ser fonte de adoecimento ou de promoção de saúde, o autor francês desenvolve um notável modelo para compreender a relação da saúde e da doença neste contexto a partir de uma visão de ser humano (uma antropologia, como diz o autor) psicanalítica. Não é o caso de apresentar a teoria do autor neste momento, mas apenas apontar que ela revela como certos processos de adoecimento mental (e físicos) só podem ser compreendidos a partir do trabalho. Enquanto isso, em sua grande maioria, a clínica psicanalítica exercida nos consultórios parece alheia a este debate. Sem compreender, por exemplo, que certos sintomas são a melhor forma que a pessoa encontrou para lidar com seu trabalho, a clínica que não pensa nesta dimensão corre inclusive o risco de agravar algumas modalidades de padecimento.
Destes pontos resulta a importância de pensarmos e discutirmos mais a questão laboral dentro da psicanálise. Seja para podermos atuar sobre algumas forças do ambiente laboral que podem gerar adoecimento, seja para integrarmos estas dimensões na escuta em consultório. Esta obra vem somar a estes esforços ao seu modo. Sem nenhuma pretensão acadêmica de inventariar experiências e estudos anteriores, nem tampouco de propor, ou mesmo de se deter em modelos de organização social mais amplos. Trata-se aqui de um psicanalista, com um histórico rico como empreendedor, profissional de marketing e documentarista, refletindo sobre sua prática em empresas, identificando algumas ideias que vêm lhe ajudando neste trabalho, organizando-as e apresentando-as ao leitor. Um convite para pensarmos o “bem-estar psíquico”, como ele denomina, no ambiente corporativo e sobre algumas coisas que cada um de nós — psicanalista, funcionário, empreendedor etc. — podemos fazer, ou conhecimentos que podemos ter que nos ajudem nesta jornada.
Conheci Hamilton Frediani em 2019, quando ele cursou uma disciplina sobre as teorias psicanalíticas de grupo e instituição comigo na Universidade de São Paulo. Ele dirá que me conheceu um pouco antes, em uma palestra no Centro de Estudos Psicanalíticos. Hamilton Frediani é uma daquelas pessoas, que me parecem cada vez mais raras, movidas por um enorme interesse sobre a cultura, em constante busca por conhecimento e diálogos qualificados, sem que com isso tenham se orientado para uma vida universitária.
Este livro é como que algo que se decanta das experiências profissionais e deste gosto pela cultura do autor. Ele toma forma no estilo que é próprio ao autor e em sua busca de se engajar em um diálogo com o leitor. Para o bem e para o mal, produz assim um texto livre dos academicismos aos quais estou acostumado. A maior parte de suas amplas leituras e conhecimentos opera indiretamente, auxiliando seu pensamento sem precisar serem citadas. Talvez pelo reconhecimento de que alguns saberes acadêmicos que lhe faltam seriam úteis para este livro, ou talvez querendo refletir na estrutura do livro os diálogos que buscou ter com intelectuais, acadêmicos e artistas ao longo de sua trajetória, ocorreu-lhe me convidar para estes “interfácios”.
O termo “interfácio” é um neologismo de Hamilton Frediani, como tantos outros que encontramos em seu modo de pensar e escrever. Acredito tratar-se de uma herança das incursões do autor pelo “marketing”. Hamilton brinca com as palavras e suas evocações. Cria palavras e expressões que sugerem de forma sintética suas intenções. Engaja seu interlocutor pelas emoções e pelo jogo de referências. Muito de seu pensamento se organiza ao redor de termos e expressões que cria, ou quem sabe seja mobilizado por elas.
Entre um capítulo e outro, tecerei alguns comentários, proporei relações teóricas, indicarei outros autores que se depararam com temas semelhantes, ainda que suas respostas possam ter sido muito distintas. Serei mais um leitor, lendo e reagindo ao material e assim convidando outros leitores a fazerem o mesmo, desde seus próprios pontos de vista, sustentando a vivacidade da obra que só pode se realizar com os leitores.
Apresentação - O CONTEXTO QUE JUSTIFICA O LIVRO
Colocar os termos “bem-estar psíquico” e “ativo empresarial” na mesma frase antes da pandemia da COVID-19 era motivo de estranheza, para dizer o mínimo. Junto a empresários e altos executivos, por exemplo, falar em psicanálise com empresas despertava mais curiosidade do que rejeição. Esta, quando aparecia, era justificada com o receio de admitir que aquela organização é de enlouquecer seus colaboradores. Outras, menos defensivas, alegavam que é difícil mensurar o quanto pessoas satisfeitas impactam positivamente os resultados. Mas o que esta afirmação não se leva em conta é o seu contrário: quanto impacto negativo é causado pelas pessoas descontentes?
Uma resposta interessante a essa indagação encontrei no estudo realizado por Alexandre Di Miceli, fundador da consultoria Direzione e professor da Fundação Escola de Comércio Álvarez Penteado (https://valor.globo.com/empresas/noticia/2019/02/20/a-destruicao-de-valor-dos-insatisfeitos.ghtml). Ele demonstrou que o impacto da destruição de valor dos funcionários infelizes é maior que o poder de criação de valor dos contentes. O consultor analisou dados de uma plataforma de recursos humanos que registra avaliações feitas por funcionários e ex-funcionários das maiores empresas do Brasil em termos de receita líquida em conjunto com os indicadores financeiros dessas companhias. A matéria publicada no jornal revela que o retorno sobre o patrimônio líquido, por exemplo, é praticamente o dobro no caso das empresas mais bem avaliadas, em comparação com as que mais mal avaliadas. No caso das primeiras, o retorno é de 8,5%, enquanto nas segundas é de 4,4%. "As companhias destroem valor quando não têm um bom ambiente de trabalho", afirma Di Miceli.
Os resultados dessa pesquisa são consistentes com o funcionamento do nosso psiquismo, para o qual o prazer é vivenciado também como ausência de desprazer. Portanto, é justificável investir nesse benefício negativo que é a não presença do mal-estar.
Já entre os meus pares psicanalistas, a recepção da ideia de psicanálise aplicada a empresas suscitava desde uma simpatia cética até o apontamento de conflitos inconciliáveis com os princípios teóricos, clínicos e éticos da psicanálise.
Tais acolhidas quase me desanimaram, mas o que não estava sendo dito, pôde ser gritado. A saúde mental passou de uma “crise silenciosa” antes da pandemia para uma emergência de saúde pública global após sua eclosão. Entre as causas para tal “silêncio”, havia um forte estigma associado a problemas mentais. A maioria das pessoas não se sentia confortável para falar sobre o tema no ambiente corporativo. No entanto, todo esse contexto, inicialmente relacionado ao trauma, luto, esgotamento e crise econômica decorrentes da pandemia, foi aos poucos autorizando as pessoas a falar naturalmente sobre seus quadros e procurar por ajuda, dando expressão social ao que antes era um sofrimento solitário. Desde então, como efeito colateral positivo, a saúde mental passou a demandar campanhas e políticas públicas.
Começou também a pautar o jornalismo profissional, alimentar as redes sociais e, claro, entrar definitivamente para a agenda dos RHs das empresas. É amplamente reconhecido o aumento da atenção das empresas à saúde mental dos colaboradores por meio da oferta de teleterapia e programas educativos. Além disso, o governo, ao perceber os altos impactos previdenciários dos afastamentos por transtornos mentais, começa a orientar e exigir que as empresas mapeiem os riscos psicossociais de seus quadros e tomem providências para mitigá-los sob pena de receberem pesadas multas. Os cuidados com a saúde mental dos colaboradores, portanto, não apenas deixaram de ser um tabu como foram judicializados e se tornaram uma obrigação empresarial monitorada pelo poder público.
Dentro desse breve arco temporal, o que vou propor foi pensado durante a citada “fase silenciosa” de sofrimento mental nas empresas, o período em que eu atuei como empreendedor e empresário, ou seja, bem antes da pandemia da Covid 19.
Reforçor que o que trago aqui é apenas um entre outros tantos métodos e dispositivos para enfrentar o problema. O desafio é enorme e toda iniciativa é bem-vinda, pois, quanto maior da diversidade de perspectivas, técnicas e ferramentas propostas, maiores as chances de cada empresa encontrar o que melhor funciona para a sua particular necessidade.
ATENÇÃO: ESTE LIVRO NÃO TRATA DE SAÚDE MENTAL, MAS DO BEM-ESTAR PSÍQUICO.
Como diferencio saúde mental de bem-estar psíquico? Por que faço essa distinção? E de que maneira bem-estar psíquico pode se tornar um ativo empresarial? Comecemos pela diferenciação entre as terminologias.
Segundo o Ministério da Saúde, o conceito de saúde mental transcende o âmbito individual e abrange uma rede de fatores interconectados. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) a saúde mental pode ser considerada um estado de bem-estar vivido pelo indivíduo. Isso possibilita o desenvolvimento de suas habilidades pessoais para responder aos desafios da vida e contribuir com a comunidade. O bem-estar de uma pessoa está intrinsecamente ligado a uma série de condições, que vão muito além do aspecto exclusivamente psicológico. Além de individual, a saúde mental é também socialmente determinada. Por isso, deve-se considerar que ela é resultante da interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Pode-se afirmar que a saúde mental tem características biopsicossociais.
Já o bem-estar psíquico foi um termo que encontrei para assimilar a definição mais geral da saúde mental ao âmbito peculiar das empresas. Busquei um conceito em linha com a psicanálise que enfatiza o caráter mais subjetivo do que se entende por saúde mental. E, como não poderia deixar de ser, pelo papel dos conflitos inconscientes, do ambiente e dos relacionamentos no processo do adoecimento. O bem-estar psíquico, portanto, está no centro da minha abordagem. Eis a minha definição:
Bem-estar psíquico é uma percepção subjetiva de que a angústia originada no trabalho, ou fora dele, pode ser melhor tolerada quando a alta gestão contribui para que a cultura organizacional e as relações internas não apenas evitem ser um fator desencadeante ou agravante de sofrimento, mas se tornem uma fonte de vitalidade psíquica.
Note que esta definição contempla o indivíduo no contexto cultural e social do trabalho, estando, portanto, em linha com as premissas da OMS ao citar a saúde mental como um fenômeno “socialmente determinado”. A definição da OMS, apesar de apontar devidamente para o determinante social, é um tanto abrangente e vaga quanto ao que fazer a respeito. O passo que dou a mais em favor do bem-estar psíquico, é localizar um agente no interior da comunidade-empresa com poderes de não apenas reverter o mal-estar, mas impulsionar o bem-estar psíquico.
Não intenciono idealizar essa proposta e nem oferecer fórmulas fechadas para erradicar a angústia no trabalho. Um certo mal-estar é intrínseco ato de viver, dentro e fora do trabalho, sob aquilo que os filósofos se ocupam desde a antiguidade e diante do quê toda humildade é bem-vinda: o acaso, as contingências da vida. Especificamente no terreno do trabalho, as principais fontes de contingência podem ser situadas nos seus próprios ambientes, externo e interno. Os fenômenos e variáveis do contexto externo mudam de forma acelerada e imprevisível, exigindo que empresas não apenas se adaptem, mas se antecipem a essas mudanças. Fenômenos inéditos que ocorrem de maneira inesperada e em ciclos cada vez mais curtos, restando às empresas permanecerem em estado de prontidão e permanente movimento a fim de manter sua relevância. É muita pressão. Tamanha instabilidade não é facilmente assimilada pelo nosso psiquismo, o que vai impactar o ambiente interno e caracterizá-lo como a segunda fonte de contingências produtoras de mal-estar. Ou seja, a complexidade externa vai exigir um intenso grau de interação entre pessoas, áreas e equipes para que a empresa consiga responder com soluções à altura. Tal demanda por cooperação sob pressão do tempo e das incertezas vai então potencializar a emergência de conflitos relacionais e dinâmicas de trabalho indutores de sofrimento psíquico.
Dessas duas fontes de contingências relacionadas ao trabalho, somente a que se refere ao ambiente interno é possível exercer algum grau de influência e tentar compatibilizar resultados empresariais com bem-estar psíquico. Mas, como?
Em quatro décadas de atividade empresarial, sempre observei a tendência de se naturalizar a ideia de que a saúde física e psíquica das pessoas é responsabilidade de cada um, independente das pressões do trabalho.
Uma parte, evidentemente, o é, pois o que gera desequilíbrio e adoecimento transcende as determinantes exclusivamente laborais. Trata-se do mundo interno de cada pessoa, sua forma singular de ser afetada e reagir a tudo que está em volta.
No entanto, por mais que seja praticamente impossível uma empresa ser apontada como única responsável pelos transtornos psíquicos de alguém, é livre de controversa que, se o ambiente interno contar com o compromisso institucional para fazer da confiança o valor basilar da cultura organizacional, menos “nervosa” será essa cultura. Para isso, a confiança deverá ser radical.
O pressuposto é que, sendo incontornável cooperar para lidar com a complexidade e pressão do ambiente externo, as pessoas vão se sentir mais seguras se houver confiança para encarar os colaterais dessa cooperação estressada: conversas difíceis e conflitos interpessoais. A confiança radical induz ao cuidado para que a forma como vão fazer isso não escale o sofrimento mental. E, se acontecer, essa mesma confiança radical evitará estigmatizar, segregar ou assumir que o sofrimento de alguém não é problema da empresa. É um problema para todas as partes. Parafraseando Lord Acton, diria:
Com confiança as pessoas cooperam, com confiança radical as pessoas cooperam radicalmente.
Para se tornar realidade, essa confiança radical precisa ser exercida na alta gestão, entre seus membros e entre estes e as demais lideranças com as quais interagem. Ao se pensarem como a principal fonte modeladora do jeito como pessoas e equipes são comunicadas, ouvidas e tratadas, maior a percepção de que confiança e cooperação não são valores de parede, mas orientadores de práticas observáveis entre aqueles de quem menos se espera coerência entre o que prega e o que se faz.
O grande trunfo desses formadores de opinião é que também são formadores do afeto coletivo, do sentimento geral. Eles dispõem de conhecimentos e poder decisório que não estão tão disponíveis aos que estão sob sua gestão. Claro que não basta poder, conhecimento e boa vontade ao alto escalão, é preciso contar com um método e o comprometimento real do dirigente e sua equipe direta com sua implementação. É por isso que esse trabalho, como mostrarei adiante, sempre inicia com o líder dos líderes e segue até que ele próprio perceba os efeitos transformativos desse bem-estar psíquico em si, em sua vida e em sua empresa.
Com esta distinção procuro justificar que a saúde mental continue sendo um tema do RH e que o bem-estar psíquico faça parte da agenda estratégica do dirigente e que o próprio dê inicio ao processo. Vejamos o que há de sinérgico e o que há de mutuamente exclusivo de cada abordagem. Com base em mapeamentos de riscos psicossociais realizados pelo RH, as altas lideranças são solicitadas e apoiadas a tomar atitudes específicas e customizadas com suas respectivas equipes, visando reverter os riscos e mitigar os sofrimentos identificados nos levantamentos.
Nessa perspectiva, os membros da alta gestão atuam como coagentes das iniciativas do RH e não como público-alvo desses programas. Raramente participam como respondentes dos mapeamentos e menos ainda dos programas junto com os demais níveis de liderança. Observo ao menos três razões para a alta gestão não ser incluída nos programas de saúde mental de suas empresas. Primeiro é que há uma certa correspondência imaginária entre a “saúde” da empresa e a de seu corpo diretivo. Membros da alta liderança, sobretudo o dirigente da empresa, representam um lugar simbólico de solidez e invulnerabilidade. Se estão lá é porque desejam e estão preparados para bancar os riscos, lidar com as pressões e ser recompensados ou penalizados à altura.
Segundo, é de se supor que os representantes da empresa não precisam ser alvo dos programas de saúde mental oferecidos pela organização a seus colaboradores, pois podem usar seus próprios recursos para cuidar de si. Uma terceira observação, mais problemática, me diz que os altos dirigentes acabam por criar uma identificação com essa posição simbólica um tanto idealizada, negligenciando o fato de que, por mais brilhantemente resolutivos que atuem, ainda se tratam de seres humanos com suas humanas vulnerabilidades.
Muitos chegam à exaustão, trabalham sob condições patogênicas sem sequer perceber, desenvolvendo doenças em decorrência dessa identificação insustentavelmente descolada da realidade.
Evidente que o comportamento desses líderes irá afetar os que estão à sua volta, imediatamente seus diretos e, inevitavelmente, toda a organização.
Apesar desse potencial “efeito top down” do adoecimento, os membros da alta gestão resistem a admitir a necessidade de reconhecer e tratar de suas questões no mesmo contexto de seus colaboradores, ou seja, onde o mal-estar aflora, suas próprias empresas. Ou até mesmo fora desse ambiente. Estão capturados como portadores simbólicos dos atributos de infalibilidade e eficácia decisória, tornando-se presas de uma auto-idealização da resiliência, antecipação e prontidão para atingir metas, sob a pressão que for, e sem “desmanchar o cabelo”.
Há um limite adicional para que o RH não seja o agente do bem-estar psíquico. É o fato de que a própria liderança do RH é um dos membros da alta gestão. Veja os conflitos colocados. Como um risco psicossocial mapeado pelo líder do RH será atribuível ao comportamento do seu chefe? E dos seus pares? E de si mesmo? Ainda que essas avaliações sejam executadas, mantidas sob sigilo de terceiros e de acesso exclusivo dos avaliados, o que fazer com os resultados?
BEM-ESTAR PSÍQUICO TOP-DOWN
Os limites apontados acima abrem espaço para uma abordagem exclusiva da alta gestão, situando esta não como a causa do mal-estar, mas como indutora de bem-estar psíquico capaz de render frutos como ganhos de produtividade, notas positivas de NPS, e-NPS, clima e retenção de talentos. E, claro, evitar perdas com turnover, absenteísmo, presenteísmo, ações trabalhistas, afastamentos médicos e prejuízos com erros e retrabalhos.
Esses efeitos, no entanto, me parecem secundários frente à satisfação que um empresário e suas altas lideranças podem experimentar com um sucesso baseado em bem-estar psíquico, de si e todos à volta.
Mas, para isso, a metodologia e quem a aplica precisam ser neutros e livres de conflitos hierárquicos entre os membros da alta gestão e destes com seus liderados.
Reenfatizo a importância de o dirigente ser o responsável por contratar esse agente neutro e não o RH, pois aquele é o principal emissor da cultura de uma empresa e dos valores que regem comportamentos e relações internas. É quem dita, explícita ou implicitamente, o jeito de estabelecer metas, cobrar resultados, definir prioridade, distribuir reconhecimento, resolver conflitos e enfrentar situações limite com sua diretoria. E são os integrantes desta que vão ser os fiadores dessa cultura e tratar seus diretos à semelhança do que vivenciam com o seu líder.
A premissa orientadora do bem-estar psíquico é que o mesmo seja gestado e experimentado entre os membros da alta gestão e isso, por si só, impacta a saúde mental da organização. Afinal, a vida de dezenas, centenas ou milhares está sujeita a decisões e humores de não mais do que cinco, dez ou no máximo vinte pessoas. E as medidas tomadas por estas altas lideranças são mais decisivas para a cultura, a retenção dos talentos e os resultados do que se pode esperar de muitos programas de treinamento de lideranças e gestão de pessoas. A educação de adultos é algo extremamente necessário na modernidade, mas igualmente difícil.
PSICANÁLISE “CORPORATIVA” VS. A PSICANÁLISE NO CONSULTÓRIO
O objetivo de uma análise é produzir uma escuta transformativa do sujeito e de suas relações a partir de sua fala, incluindo os pensamentos e afetos inconscientes implicados nessas construções. É o que chamamos de “teatro interno” quando atendemos no consultório.
Então, por que um dirigente empresarial contrataria um psicanalista para atuar com ele em sua empresa uma vez que poderia contratar o psicanalista que quisesse de maneira mais discreta e sigilosa? Creio que tenho lugar de fala para responder a isso de três posições. Atendo empresários no consultório, atendo empresários em suas empresas e fui empresário por anos, em muitos dos quais sendo psicanalisado.
O diferencial do trabalho psicanalítico no contexto da empresa é o de poder exercer a escuta com a possibilidade de observar essas relações onde elas de fato estão acontecendo, à luz de uma cultura dada. Rebatizei esse objeto de observação de “teatro externo”. O psicanalista explora e interpreta, com o analisante, suas motivações e inibições inconscientes no palco mesmo do seu trabalho.
Ao longo dessa relação analítica, as lideranças desenvolvem “competências psíquicas” capazes de impactar a cultura pela forma como evitam que processos inconscientes geradores de ansiedade, frustração e irritação prejudiquem o desenvolvimento de projetos, carreiras e equipes. E, com efeito, extraiam mais significado e satisfação do trabalho ou, como queremos, bem-estar psíquico.
Se as motivações inconscientes não são consideradas em situações que dependem de novas posturas, padrões antigos tendem a se repetir, dificultando as respostas adaptativas ou transformativas e ocasionando perdas silenciosas.
O processo “clínico corporativo” é facilitado pelo fato de o analista e o analisante-dirigente compartilharem em parte o mesmo campo de linguagem.
Em suma, sabemos que quanto mais alta a posição de poder numa empresa, mais isolado se torna seu ocupante, resultando num decréscimo de interlocutores de confiança com quem este possa dividir questões de grande impacto em sua vida-empresa sob a mais restrita confidencialidade.
Ao ser livre de hierarquia e conflitos com partes interessadas, o psicanalista fica desimpedido de escutar e dar encaminhamento a dilemas decisórios, ensaios mentais, angústias e afetos relacionados aos temas trazidos pelo analisante-dirigente. Os diferenciais desse psicanalista não são poucos e nem supérfluos. Dizem respeito não apenas a carregar em sua bagagem vivências significativas no mundo corporativo, mas à formação, à configuração do setting analítico e ao manejo clínico especificamente concebidos para este fim.
Fecho o capítulo apresentando o caso que deu origem e nome a essa aplicação da psicanálise para empresários e suas empresas. Trata-se de uma consultoria de redesenho organizacional que eu havia conduzido muito antes da formação em psicanálise. Por isso, achei oportuno revisitar o caso e reescrevê-lo “como se” à época da consultoria eu fosse psicanalista. O que de início era um exercício de aplicação do instrumental analítico ao trabalho de transformação empresarial, se tornou um território no qual venho desde então dedicando todos os esforços.
Espero que a apresentação desse caso seminal permita ao leitor acompanhar os meandros psíquicos tanto dos analisantes em causa quanto do próprio analista que dirige o processo.
Para ficar mais clara a aplicabilidade do que escrevi neste capítulo um, pontuarei entre colchetes os aspectos que caracterizam e o diferenciam esse trabalho “in company” em relação ao trabalho no consultório.
CASO: ROMANCES FAMILIARES S/A.
O núcleo familiar em causa
A empresa, de origem familiar e com mais de oitenta anos de história, tem como administradores a segunda geração: o pai é o presidente; a filha mais nova desempenha junto com a mãe funções de finanças e RH; um dos filhos é responsável pelas exportações e relações institucionais e o outro, gêmeo fraterno, é mais empenhado com tocar a empresa como um todo. Todos os filhos tiveram vivência em outras companhias, ainda que curta, antes de atuarem na empresa da família, pertencente ao ramo têxtil.
A demanda
Ao ser contratado, entendo pela voz dos filhos, sobretudo da filha, que a família não consegue mais dar conta da administração como quando a empresa era de menor porte. O crescimento fez com que novas operações fossem abertas em outros estados e outros países da América Latina, dificultando o acesso direto aos problemas. O filho que cuida das exportações queixa-se demais dos funcionários, mostrando-se bastante crítico em relação àqueles com mais tempo de casa. Acusa-os de não se adiantarem à solução de problemas, de não saberem planejar o dia a dia e menos ainda de serem proativos, criativos, assertivos. O irmão que gere o dia a dia concorda e é ainda mais contundente e feroz na crítica aos funcionários. Embora ambos, paradoxalmente, demonstrem boa dose de complacência com erros e retrabalhos que tais deficiências acarretam.
A mãe exerce um papel meio conciliador, tanto na relação atritosa entre os irmãos, que nesse início de trabalho ainda é discreta, quanto nas relações com as diversas lideranças da organização. O conflito maior que a mãe procura mediar é o que emerge da relação entre o pai e o filho que dá o ritmo ao dia a dia da empresa. Esse ritmo muitas vezes passa por cima das opiniões do pai, assim como dos funcionários. Com seus subordinados, a mãe demonstra ser bastante autoritária e centralizadora. Parece que o filho que toca a operação, espécie de “gerente-geral” espontâneo, insinua-se como aquele que pouco a pouco ocupa a autoridade do pai. Mas tudo isso ainda é muito velado, pois as funções de cada membro da família não são muito demarcadas, havendo muitas sobreposições de funções e conflitos. Fato que fica comprovado em decisões tomadas em reuniões acaloradas pela presença e participação de todos.
O pedido que me chega em uma reunião com todos da família, é para que os ajude a tirar a empresa desse ponto de inflexão, desse estado de erros que começam a se acumular, pois os proprietários não mais conseguem ver tudo o que se passa o tempo todo, em todos os lugares. O reconhecimento dessa limitação mostrou-se um importante ponto de partida, mas insuficiente. A premissa ainda era: “nós sabemos como resolver todos os problemas, apenas nosso saber já não alcança simultaneamente todos os problemas e, para piorar, muitas das lideranças ainda deixam muito a desejar em termos de performance” [Note um sentimento de certa onipotência diante da situação-problema e baixa auto-implicação com a gênese do problemas em si. Uma tendência de projeção para os “outros” a priori].
Autonomia para o quê?
Ao escutar as lideranças que se reportam diretamente aos acionistas vai ficando claro que as relações internas são pautadas pelas ideias e ideais dos proprietários inscritos na tradição oral e que os funcionários têm sim autonomia para desempenhar suas funções, desde que sigam as priorizações dadas pelos proprietários. O grande problema, contudo, é que as prioridades mudam sem prévio aviso diariamente ou até mais de uma vez no mesmo dia. Os porquês das mudanças não são explicitados, pronunciando-se então duas tendências, a saber: 1) As pessoas ali são autônomas apenas para o “fazer” e 2) O poder e saber centrais já não dão conta da complexidade da gestão. A centralização excessiva do poder mostrou seus limites não pela problemática do poder em si, mas do saber. Saber este que além de insuficiente, produz ordens e contraordens por vezes contraditórias aos liderados. A complexidade do ambiente competitivo evidenciou-se como primeiro fator de castração1 daquela cultura de comando e controle “top down”. Agora não é mais a questão de estar longe ou perto do problema, mas de não contar o mesmo conhecimento dos que são especialistas e atuam na junto às demandas problemáticas. As lideranças executivas aspiram por maior autonomia e confiança [A angústia dos dirigentes frente aos desafios não mais controláveis vai se irradiando para os liderados que se reportam diretamente eles]. O que as lideranças executivas poderão fazer com essa autonomia será outro problema.
De volta à cúpula da empresa com esse diagnóstico, fiz então um primeiro ato analítico, bastante selvagem2 talvez, ao informá-la de que o maior entrave para superar o ponto de inflexão estava bem ali, diante dos meus olhos. E que se eles, acionistas, estivessem dispostos a reconhecer seus próprios limites e iniciar um processo de delegação de poderes e responsabilidades aos funcionários, haveria, então, uma possibilidade de transformação daquela cultura organizacional octogenária.
Autonomia do pensar
Uma nova forma de organização deveria ser proposta contemplando com mais clareza os papéis e suas relações de interdependência. A começar pelos membros da cúpula diretiva. Foram definidos os campos de atuação de cada um com os limites de atuação bem delineados. Ficou estabelecido que a cúpula catalisaria, com a força do exemplo, todas as mudanças que esperava implementar na base da pirâmide. E mais, que seria dessa base pirâmide que viria a maior parte das soluções para os novos tempos.
De mãe para filho. Qual filho?
Surge então uma questão: como demonstrar para toda empresa, por meio de exemplos concretos, que o processo de autonomizar as pessoas não é apenas intencional, um belo discursivo? Por que não nomear um novo presidente, uma vez que o pai vem dedicando-se cada mais ao conselho de administração? A essa proposta, a irmã indaga: você sugere que contratemos um profissional de fora? Eu devolvo: é uma questão que só vocês podem responder. A irmã, com o aval do irmão responsável pela exportação e o aceite meio resistente da mãe, indica o outro irmão para ocupar tal posição. O pai não está presente na sala. Foi assim, rápido e prático. É o irmão mais indicado porque afinal já ocupa esse lugar oficiosamente.
O pai e o retorno ao Édipo
Eu fico com a incumbência de levar essa proposta ao pai. Tarefa que não deveria ter aceito, pois me colocou no papel de protagonista de soluções que estavam sendo construídas até aquele momento com a implicação dos membros da família sob a minha, digamos no máximo, coadjuvância. Embora extremamente cético em relação à validade da recomendação que levo até ele, o pai não se opõe à implementação da nova estrutura. Acredita que nenhum dos membros da família ou da empresa está apto a ocupar tal lugar e a empreender tais mudanças. Eu pergunto se alguém trazido de fora junto com outros profissionais daria conta das transformações. Ele também acha que não, daí não objetar, apesar de toda a incredulidade. Um conflito e tanto que tenho dificuldades para compartilhar ao retornar para o grupo com essa aprovação reticente do pai.
A certeza de que nenhum dos filhos será capaz de levar a empresa a um novo e melhor patamar introduz para mim a mais importante reflexão sobre esse trabalho e vai me deixar em alerta em relação a tudo o que vem depois. Um conflito latente estava perto de se manifestar. E iria arrastar atrás de si questões relacionais primitivas dessa família [Muitos não-ditos, como é comum em toda família, ganham contornos potencialmente mais dramáticos ao impactar as relações institucionais]. A incredulidade do pai me fez pensar o quanto uma empresa familiar pode impor aos filhos, em menor ou maior grau, uma reedição do complexo de édipo ou, melhor dizendo, o adiamento de sua dissolução. Traduzindo. É na passagem da adolescência para a vida adulta que o sujeito deve renunciar ao desejo de se manter unido aos pais, materialmente ou sob seus ditames, e dar os passos em direção à cultura, fazer suas próprias escolhas de outros objetos, fora do núcleo familiar.
Ingressar na empresa da família, mesmo que após um período de experiência em outras empresas, significa ser reintroduzido no seio familiar para renascer sob os auspícios dos cuidadores originários. A assimetria é clara: o pai com todo o seu saber empresarial continuará exercendo um controle sobre o filho. Este experimentará dificuldades extras, pois, embora adulto, encontrará obstáculos para ter suas hipóteses validadas e reconhecidas. A empresa não seria simbolicamente a mãe a quem o pai tentaria impedir que o filho tomasse de si? Claro que não penso que isso seja um processo consciente, nem livre de ambiguidades e menos ainda um enredo que ocorre em toda empresa familiar. O pai também pode pensar que a empresa é simbolicamente um dos “filhos” através do qual pereniza sua existência no mundo. Prova disso é que esse pai em questão não se opõe à execução do plano. Essa não oposição não equivaleria, ainda que com sinal trocado, a uma aprovação?
A nova estrutura produziu dinâmicas relacionais reveladoras de novos conflitos em todas as instâncias de poder. Vou me ater ao mais significativo deles por trazer mais elementos para me ajudar a pensar psicanaliticamente. O primeiro momento foi de alívio. Finalmente aquilo que circulava como “não dito” agora é assumido. Há um presidente executivo e será a partir de suas definições que a empresa agora se organiza, diminuindo a quantidade de contradições, espera-se. Três funcionários são promovidos a diretores e passam a fazer parte da cúpula. A mãe entende que esse movimento de profissionalização sugere que ela se desligue das funções executivas e faça parte do conselho junto com o pai. Tal medida autentica a posição do filho líder e reforça o processo de profissionalização.
Nenhum dos irmãos será tratado como o pai os tratava.
A travessia do modelo autonomia do fazer para o modelo autonomia do pensar não se deu sem percalços. A tomada do poder por um dos irmãos evocou sentimentos primitivos no outro cujos contornos não difíceis de identificar em Totem e Tabu3 escrito por Freud em 1913. De início o processo decisório se reapresentava como no modelo antigo. Discussões inflamadas que chegavam a um resultado mais ou menos consensual. A presença de três diretores fora da linhagem sanguínea despolarizava um pouco os embates, mas não o suficiente, pois estes eram “crias da casa” e, portanto, familiarizados com aquela dinâmica e impotentes para mudá-la.
Pouco a pouco, a postura do irmão subordinado começa a mudar no sentido de confrontar as decisões do irmão empossado líder. As discussões sobem de tom, não raramente terminando em batidas de porta, gritos e mal-estar que se espalha por toda a empresa [Aqui, pode-se observar o ápice da angústia diante dos conflitos entre o desejo de mudar e as resistências inconscientes para as transformações. A angústia se transforma em sintomas]. Ocupo aquele lugar do “sujeito suposto saber”4 e todos olham para mim com a interrogação: o que fazer? A voz do pai me ronda, não estaria ele certo em relação ao despreparo dos herdeiros?
O conflito central é que os papéis de irmãos, sócios e executivos estão muito embaralhados. A relação de ascendência de um irmão sobre o outro, ainda que em nome de um processo que se deseje estruturante de uma nova ordem de poder, evoca a relação mais primitiva de ambos. Embora gêmeos, o irmão presidente sempre se insinuou como um irmão mais velho, mais forte, replicando um pouco o modelo paterno autoritário sobre o irmão que agora se sente novamente à condição de assujeitamento. Uma trama adormecida que foi atualizada por esse processo.
Entre a liberdade e a segurança
A lei é problemática sempre. Todos a queremos, pois, é a lei que nos protege contra abusos, mas é também ela que cerceia a nossa liberdade. A empresa precisa escrever suas leis, abandonar a transmissão baseada na oralidade, a informalidade e, de certa forma, o paternalismo, sob pena de incorrer em injustiças e mais mal-estar.
Seria preciso que ambos os irmãos se comprometessem com um acordo mínimo de sujeição às leis de conduta no âmbito profissional a que todos devem estar submetidos. Dessa forma toda a organização entenderia que as decisões não mais seriam resultantes de opiniões, simpatias, temperamentos e julgamentos pessoais dos donos, mas orientadas por uma instância simbólica superior compartilhada por todos, sem exceções.
Fácil de produzir compreensão consciente, mas e o inconsciente com isso tudo? Não estava no meu escopo de trabalho fazer a análise dos irmãos, mas não por isso deixo de escutar algo do inconsciente deles e de toda a organização. Se os sintomas muitas vezes são realizações do desejo de maneira distorcida, assim como os sonhos, então estes podem fornecer as pistas para novas formações de compromisso.
Renúncia pulsional
Logo descubro que não se tratava apenas de escrever leis e fazê-las cumprir. Isto foi feito e o resultado foi precário. Por quê? Mais do que leis escritas, eram necessárias leis simbólicas mais amplas. Os operadores dessa lei não são instâncias administrativas e suas funções regulatórias e punitivas. A pulsão pode se conformar temporariamente a um recalcamento e se acomodar em um sintoma, mas continuará a exercer sua força, mesmo à força contrária das leis. O constrangimento que levou o irmão subordinado a buscar um outro destino ao seu desejo foi a chegada de novos diretores contratados de fora da empresa. O poder agora não estava mais nem com o pai, nem com irmão líder, que tendia a uma gestão mais impositiva sobretudo com o irmão. O poder agora estava com os novos talentos, vindos de fora com o saber que qualifica as discussões no âmbito técnico. O novo grupo é a nova lei, mas nenhum de seus membros a detém e a aplica isoladamente. O poder agora é circulante. Nem o irmão líder pode impor suas decisões ao grupo, nem o irmão subordinado pode deixar de cumprir o combinado pelo grupo.
A formação de compromisso foi encontrada pelo irmão subordinado na medida em que foi possível admitir para si, no íntimo, que não aceitava o poder que foi atribuído ao irmão, embora reconhecesse em parte o mérito de sua conduta empresarial. Antes de chegar a essa conclusão, anunciara sua saída da empresa, mas retornara por diversas vezes, ficando impossível deixar de fazer uma associação às avessas com o Fort-da5 formulado por Freud, dinâmica debaixo sob a qual a empresa novamente seria a mãe de quem eu posso me ausentar e para quem posso voltar a qualquer momento.
Ao dividir e tratar isso junto com o irmão presidente, o pai e a mãe, o irmão aceitou o fato de que seria melhor afastar-se do dia a dia como executivo subordinado e posicionar-se como par do irmão, numa espécie de copresidência dedicada a assuntos mais estratégicos e menos operacionais. Foi uma longa jornada, mas foi possível acomodar todas as posições de maneira suficientemente boa, não sem dor, sofrimento, culpa e muita elaboração ao longo de intensas conversas. Mais adiante, o irmão copresidente descobriu que seus desejos iam muito além do que obtinha de satisfação dentro daquele núcleo familiar. Não se tratava apenas de não mais precisar afirmar sua existência com base na disputa de poder com o irmão. Então, uma rota de saída desse núcleo familiar foi programada e efetivada. [Aplicar a técnica psicanalítica com os estes empresários na própria empresa, ainda que neste caso sem grande envolvimento das demais lideranças e colaboradores, foi determinante para poder observar e escutar “ao vivo e em tempo real” o retorno e a elaboração dos desejos e afetos reprimidos em cada um dos personagens dessa trama. Resultado que dificilmente seria alcançado ao se trabalhar com apenas um ou outro no consultório ao longo desse mesmo horizonte de tempo. O impacto na percepção do bem-estar psíquico desde os dirigentes produziu seus efeitos sobre todo o tecido social da organização].
Acredito que o desfecho desse caso demonstra bem o estatuto que Freud atribuiu ao trabalho enquanto motor da nossa conexão com a realidade e a vida social (Mal-estar na Civilização- 1939):
Nenhuma outra técnica de condução da vida liga o indivíduo tão fortemente à realidade como a insistência no trabalho, que ao menos o inclui de forma segura num fragmento da realidade, a comunidade humana. A possibilidade de deslocar para o trabalho profissional e aos vínculos que a ele se enlaçam, uma considerável medida de componentes libidinais, narcisistas, agressivos e até eróticos, lhe confere um caráter indispensável para confirmar e justificar a vida em sociedade.
No total, os três anos desse trabalho culminaram com a fusão dessa empresa com um grupo internacional. A família continuou detendo uma participação no negócio, mas atuando apenas no conselho.
Reflexão final
Foi interessante observar os fenômenos inconscientes se manifestando a plena carga nesta empresa, mesmo que em retrospectiva por meio desse ensaio. O desafio maior para essa empreitada é a falta de tempo e espaço para trazê-los à baila, escutá-los e elaborá-los dentro da agenda empresarial. Só o escutamos, ou melhor, só sentimos os efeitos de suas manifestações, quando acontecimentos extraordinários o precipitam sobre a ordem instalada, desorganizando-a. Esses acontecimentos extraordinários estão se tornando cada vez mais ordinários na contemporaneidade. São revezes causados pelas disrupções da tecnologia, restrições legais, volatilidade das transformações socioculturais entre outros fenômenos que colocam as corporações, mesmo as mais poderosas, em posição de vulnerabilidade, defesa, hesitação, agressão, confrontando-as com os limites e censuras de que nenhuma escapa, ou pelo menos indefinidamente. A era do líder carismático, centralizador e autoritário vem dando lugar aos poucos a um líder mais consciente de suas restrições e, portanto, da sua dependência dos outros para conseguir se haver ou não com toda a complexidade que se lhe apresenta.
Ao começar a fazer questões para o seu inconsciente, o líder pode se ver mais implicado nas queixas que formula e a experimentar uma nova dinâmica nas relações com e entre seus colaboradores. Certamente algo de novo se apresentará. Entender que a realidade é experimentada de maneira singular pelos sujeitos e que estes são regidos por afetos inacessíveis que se presentificam quando em relação, pode ser um ato gerencial eficaz em si. Torna-se possível contar com a liberação, captura e canalização de energias poderosas em qualquer direção, inclusive as mais criativas e produtivas. Seria uma maneira de um empresário ou qualquer profissional em posição de liderança olhar e fazer escolhas ante o princípio de realidade que vem tanto de fora quanto de dentro de suas corporações?
Finalizo com mais uma questão para futura reflexão: são “familiares” apenas as empresas familiares? Quanto da matriz edipiana está operando também nas mais anônimas das sociedades? Uma questão que fica para a nossa “clínica corporativa”.
Ao escrever esse texto, não imaginava que as duas questões colocadas ao final como um jogo de palavras provocativo seriam mais de uma década depois respondidas com um sim: “todas as empresas são familiares” e “mesmo as mais anônimas das sociedades”. Veremos o porquê dos sins no próximo capítulo.
* Em 1909 Freud analisa um fenômeno psíquico comum na infância, no qual a criança cria histórias imaginárias sobre sua origem e seus pais. Esse fenômeno é chamado de romance familiar. À medida que a criança cresce, ela começa a perceber as falhas e limitações dos pais, que antes eram vistos como figuras idealizadas e onipotentes. Isso leva a um certo desencantamento. Como reação a essa desilusão, a criança cria fantasias nas quais seus pais verdadeiros são substituídos por figuras mais nobres, importantes ou poderosas — como reis, heróis ou pessoas famosas. Freud chama isso de uma forma de substituição fantasiada dos pais. O romance familiar também reflete desejos inconscientes de elevação social, como se a criança dissesse: “meus pais verdadeiros não podem ser essas pessoas comuns; devo ser filho de alguém mais grandioso”. O romance familiar tem uma função psíquica importante: preservar o narcisismo infantil e lidar com as frustrações da realidade.
1 Para a psicanálise a castração é um conceito central, mas muito distante do sentido físico ou literal do termo. Está relacionado ao desenvolvimento e à formação da identidade, especialmente no que diz respeito à sexualidade e às relações com figuras parentais. No menino, surge entre 3 e 6 anos, quando ele desenvolve desejos pela mãe (Complexo de Édipo) e vê o pai como um rival. Ao perceber que a mãe "não tem pênis", ele interpreta isso como uma punição — e teme perder o seu próprio, como se o pai pudesse castrá-lo por seus desejos incestuosos. Esse medo é chamado de angústia de castração. O medo da castração é o que leva a criança a renunciar aos desejos incestuosos. Essa renúncia é fundamental para a internalização da autoridade paterna e para a formação do superego, ou seja, a instância psíquica que regula o comportamento com base em normas e valores.
2 Freud define psicanálise selvagem como o uso imprudente, especialmente fora do contexto do tratamento analítico legítimo. Pessoas que, conhecendo superficialmente a psicanálise, passam a interpretar sonhos, sintomas ou comportamentos dos outros de forma reducionista e muitas vezes invasiva e precipitada e generalizada.
3 Freud propõe que, em tempos pré-históricos, havia uma horda primitiva dominada por um pai tirânico que tomava todas as mulheres para si. Os filhos, desejando essas mulheres e ressentindo-se da dominação, matam o pai. Depois, arrependidos e culpados, eles o simbolicamente "restauram" por meio do totem, um animal sagrado que o representa. Isso dá origem às proibições do incesto e do assassinato, fundamentos da cultura. Freud deixa claro com esse texto que a escritura, a observância e o cumprimento da lei é a única condição para que nenhum dos irmãos cometa com os demais o mesmo abuso que fora cometido pelo pai morto.
4 O conceito “sujeito suposto saber” é do psicanalista francês Jacques Lacan e refere-se à suposição de que o analista detém um saber sobre o desejo ou o inconsciente do analisando. É essa suposição que sustenta o vínculo na análise —ou seja, é porque o paciente supõe que o analista sabe algo sobre ele que a análise pode ocorrer. Lacan mostra que essa suposição não é um erro, mas sim o que torna possível o processo analítico. O analista ocupa, portanto, um lugar simbólico, não por realmente saber, mas por ser suposto como detentor de um saber sobre o sujeito.
5 O "Fort da" em Freud é uma observação importante sobre o surgimento da simbolização e o manejo da ausência. Freud observa um jogo repetitivo feito por seu neto de cerca de 1 ano e meio. O menino arremessava um carretel preso por um barbante para longe de si e dizia "fort" (em alemão, "foi-se" ou "não está mais aqui"). Depois puxava o carretel de volta e dizia "da" ("aqui está"). Freud interpreta esse jogo como uma forma de a criança lidar com a angústia da ausência da mãe, representando simbolicamente sua partida e retorno. Ele percebeu que a criança transforma uma experiência passiva (a perda da mãe) em uma ativa por meio dessa representação lúdica ao brincar com o carretel: ela mesma "faz desaparecer" e "fazer voltar" o objeto. É um passo importante para a constituição do sujeito, pois implica a capacidade de simbolizar a ausência. Esse pequeno jogo infantil tem, portanto, um valor teórico enorme, pois Freud nele vê um embrião da linguagem, da simbolização e da estruturação psíquica.
Interfácio da Apresentação (Pablo Castanho)
O encontro entre psicanálise e empresas pode surpreender a muitos, e de fato trata-se de via pouco percorrida, mas ela tem uma história, autores e ideias de longa data. Em seu livro “Amor em tempos de capitalismo”, Eva Illouz (2007) sugere uma afinidade de base entre a psicanálise e a administração de empresas como ciência. Para a autora, o grande impacto que a psicanálise teve nos Estados Unidos da América contribuiu para o interesse de olhar para si, valorizou a dimensão subjetiva dos afetos, devaneios e outros, conferiu ao mundo subjetivo certa tangibilidade e reconhecimento social. Tais elementos participaram da construção da ciência da administração nos Estados Unidos da América. Lembra-nos a autora que Elton Mayo, considerado o pai da “Escola das Relações Humanas”, teve uma formação inicial como analista junguiano e aponta como a escuta que orientou sua célebre pesquisa na General Electric converge com a escuta analítica. De modo comparável a escuta de um analista em sessão, seus entrevistadores eram orientados a estimular a livre expressão, abster-se de conselhos e discussões, ouvir para além o que era expressamente dito e comprometer-se com o sigilo das trocas.
Verdade que a psicanálise se fez presente neste momento como que por “diluição”, contribuindo para um “caldo cultural” do qual a ciência da administração de empresas emergiu. Interlocuções mais diretas surgiram em momentos posteriores. Em 1955, temos a publicação do texto fundante de Elliot Jacques, “Os sistemas sociais como defesa contra a ansiedade persecutória e depressiva”, que primeiro se vale da psicanálise para endereçar pensamentos e modos de funcionamento nada lógicos por trás da aparente organização objetiva dos sistemas corporativos. No Tavistock Institute for Human Relations, em Londres, a psicanálise segue se encontrando com questões empresariais variadas até hoje. Na França, poderíamos tomar a publicação de “O poder das organizações” em 1979 como um marco da chamada sociologia clínica. Neste país, autores como Max Pagès, Vincent de Gaulejac e Eugène Enriquez fizeram contribuições muito expressivas sobre o campo, notadamente sobre as formas inconscientes pelas quais o poder atravessa (e constitui) as organizações. Autores como Jean-Claude Rouchy, da psicossociologia psicanalítica, e mesmo psicanalistas como Didier Anzieu também fizeram contribuições para a área. Isso além da já referida Psicodinâmica do Trabalho, que aborda a questão por um viés um tanto diferente.
Não é de estranhar que exista inclusive uma associação internacional, a International Society for the Psychoanalytic Study of Organizations (ISPSO), que congrega pessoas que pensam formas de trabalho nas empresas baseadas na psicanálise. Não estamos diante de mata totalmente virgem; temos de fato algumas trilhas e picadas, por vezes difíceis de encontrar. Hamilton Correa abre seu próprio caminho; veremos se e como cruzará, se aproximará ou se distanciará de outros ao longo desta obra.
Referências
ELLIOTT, J. (1955). Os Sistemas Sociais como Defesa contra a Ansiedade Persecutória e Depressiva. In: KLEIN, M.; HEIMANN; MONEY-KYRLE, R. E. Temas de Psicanálise Aplicada. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
ILLOUZ, E. (2007). O Amor nos tempos do Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
PAGÈS, M.; BONETTI, M.; GAULEJAC, D.; LE GRAND (1979). O poder das organizações. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.