APRESENTAÇÃO DO LIVRO
Trabalho em andamento, em breve nas livrarias
CAPÍTULO 1.
O CONTEXTO QUE JUSTIFICA O LIVRO
Colocar os termos “bem-estar psíquico” e “ativo empresarial” na mesma frase antes da pandemia da COVID-19 era motivo de estranheza, para dizer o mínimo. Junto a empresários e altos executivos, por exemplo, falar em psicanálise com empresas despertava mais curiosidade do que rejeição. Esta, quando aparecia, era justificada com o receio de admitir que aquela organização é de enlouquecer seus colaboradores.
Já entre os meus pares psicanalistas, predominavam desde um ceticismo produtivo até o apontamento de conflitos inconciliáveis com os princípios teórios e clínicos da psicanálise.
Tal ambiguidade era compreensível, mas o que não estava sendo dito, pode ser gritado. A saúde mental passou de uma “crise silenciosa” antes da pandemia para uma emergência de saúde pública global após sua eclosão. Até então a estimativa já era expressiva: entre 15% e 20% dos trabalhadores apresentavam algum transtorno mental como ansiedade ou depressão leve, segundo a OMS. No entanto, entre as grandes empresas, menos de 30% tinham ações contínuas voltadas à saúde mental de acordo com pesquisa da Deloitte. As faltas ao trabalho por motivos de adoecimento mental eram crescentes, mas ainda pouco visíveis nas estratégias de RH.
Entre as causas para tal “silêncio”, havia um forte estigma associado a problemas mentais. A maioria das pessoas não se sentia confortável para falar sobre o tema no ambiente corporativo. No entanto, todo esse contexto, inicialmente relacionado ao trauma, luto, esgotamento e crise econômica decorrentes da pandemia, foi aos poucos autorizando as pessoas a falar naturalmente sobre seus quadros e procurar por ajuda, dando expressão social ao que antes era um sofrimento solitário. Desde então, como efeito colateral positivo, a saúde mental passou a demandar campanhas e políticas públicas, sobretudo voltadas para populações mais vulneráveis como crianças, adolescente, idosos e pessoas em condições de muita pobreza.
Passou também a pautar o jornalismo profissional, alimentar as redes sociais e, claro, entrar definitivamente para a agenda dos RHs das empresas. É amplamente reconhecido o aumento da atenção das empresas à saúde mental dos colaboradores por meio da oferta de teleterapia e programas educativos. Além disso, o governo, ao perceber os altos impactos previdenciários dos afastamentos por transtornos mentais, começa a orientar e exigir que as empresas mapeiem os riscos psicossociais de seus quadros e tomem providências para mitigá-los sob pena de receberem pesadas multas. Os cuidados com a saúde mental dos colaboradores, portanto, não apenas deixaram de ser um tabu como foram judicializados e se tornaram uma obrigação empresarial monitorada pelo poder público.
Espero ter deixado claro que o que vou apresentar nesse livro foi desenvolvido e vem sendo implementado muito antes da pandemia, ou seja, durante a citada “crise silenciosa” de saúde mental. Embora a covid tenha contribuído para o aparecimento de incontáveis soluções de saúde mental para mercado corporativo, não foi o que motivou minhas pesquisas e desenvolvimentos.
Dito isto, faço questão de reforçar que o que proponho é apenas um entre outros tantos métodos e dispositivos para enfrentar o problema. O desafio é enorme e toda iniciativa é bem-vinda, pois, quanto maior da diversidade de perspectivas, técnicas e ferramentas propostas, maiores as chances de cada empresa encontrar o que melhor funciona para a sua particular necessidade.
ATENÇÃO: ESTE LIVRO NÃO TRATA DE SAÚDE MENTAL, MAS DO BEM-ESTAR PSÍQUICO.
O leitor deve estar se perguntando: qual a diferença entre saúde mental e bem-estar psíquico? Por que o autor faz essa distinção? E de que maneira bem-estar psíquico pode se tornar um ativo empresarial? Comecemos pela diferenciação entre as duas terminologias.
Segundo o Ministério da Saúde, o conceito de saúde mental transcende o âmbito individual e abrange uma rede de fatores interconectados. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) a saúde mental pode ser considerada um estado de bem-estar vivido pelo indivíduo. Isso possibilita o desenvolvimento de suas habilidades pessoais para responder aos desafios da vida e contribuir com a comunidade. O bem-estar de uma pessoa está intrinsecamente ligado a uma série de condições, que vão muito além do aspecto exclusivamente psicológico. Além de individual, a saúde mental é também socialmente determinada. Por isso, deve-se considerar que ela é resultante da interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais. Pode-se afirmar que a saúde mental tem características biopsicossociais.
Já o bem-estar psíquico foi um termo que encontrei para assimilar a definição mais geral da saúde mental ao âmbito peculiar das empresas. Busquei um conceito em linha com a psicanálise que enfatiza o caráter mais subjetivo do que se entende por saúde mental. E, como não poderia deixar de ser, pelo peso dado aos conteúdos inconscientes, ao ambiente e às relações no processo do adoecimento. O bem-estar psíquico, portanto, está no centro da minha abordagem. Eis a minha definição:
Bem-estar psíquico é uma percepção subjetiva de que a angústia originada no trabalho, ou fora dele, pode ser melhor tolerada quando a alta gestão contribui para que as relações internas não apenas evitem de ser um fator desencadeante ou agravante de sofrimento, mas se tornem uma fonte de vitalidade psíquica.
Note que esta definição contempla o indivíduo no contexto cultural e social do trabalho, estando, portanto, em linha com as premissas da OMS ao citar a saúde mental como um fenômeno “socialmente determinado”. A definição da OMS, apesar de apontar devidamente para o determinante social, é abrangente e vaga demais quanto ao que fazer a respeito. O passo que dou a mais em favor do bem-estar psíquico, é localizar um agente no interior da comunidade-empresa (as altas lideranças) com poderes de não apenas reverter o mal-estar, mas impulsionar o bem-estar psíquico.
Veja que não estou idealizando essa proposta e não vou oferecer fórmulas fechadas para para erradicar a angústia no trabalho. Um certo mal-estar é intrínseco ato de viver sob aquilo que os filósofos se ocupam desde a antiguidade e diante do quê toda humildade é bem-vinda: os acasos e contingências da vida. Sou, portanto, um cético com programas que tragam novidades em tom de promessas definitivas. Mas acredito, sim, ser possível agir com o que se tem à mão para a angústia ser “melhor tolerada” no contexto corporativo. E o que mais está à mão nesse universo é a possibilidade de as altas lideranças se pensarem como a principal fonte modeladora de como pessoas e equipes são tratadas e gerenciadas, sobretudo sob pressão. Elas dispõem de poder e conhecimentos que não estão tão disponíveis aos que estão sob sua gestão. Claro que não basta poder, conhecimento e boa vontade ao alto escalão, é preciso um método e o comprometimento do dirigente principal com sua implementação. É por isso que esse trabalho, como mostrarei adiante, sempre inicia com o líder dos líderes e segue até que ele próprio perceba os efeitos transformativos desse bem-estar psíquico em si, em sua vida e em sua empresa.
Com esta distinção procuro justificar que a saúde mental continue sendo um tema do RH, mas que o bem-estar psíquico faça parte da agenda estratégica do dirigente e que o próprio dê inicio ao processo. Vejamos o que há de sinérgico e o que há de mutuamente exclusivo de cada abordagem. Com base em mapeamentos de riscos psicossociais realizados pelo RH, as altas lideranças são solicitadas e apoiadas a tomar atitudes específicas e customizadas com suas respectivas equipes, visando reverter os riscos e mitigar os sofrimentos identificados nos levantamentos.
Nessa perspectiva, os membros da alta gestão atuam como coagentes das iniciativas do RH e não como público-alvo desses programas. Raramente participam como respondentes dos mapeamentos e menos ainda dos programas junto com os demais níveis de liderança. Observo ao menos três razões para a alta gestão não ser incluída nos programas de saúde mental de suas empresas. Primeiro é que há uma certa correspondência imaginária entre a “saúde” da empresa e a de seu corpo diretivo. Membros da alta liderança, sobretudo o dirigente da empresa, representam um lugar simbólico de solidez e invulnerabilidade. Se estão lá é porque desejam e estão preparados para bancar os riscos, lidar com as pressões e ser recompensados ou penalizados à altura.
Segundo, é de se supor que os representantes da empresa não precisam ser alvo dos programas de saúde mental oferecidos pela organização a seus colaboradores, pois podem usar seus próprios recursos para cuidar se si. Uma terceira observação, mais problemática, me diz que os altos dirigentes acabam por criar uma identificação com essa posição simbólica um tanto idealizada, negligenciando o fato de que, por mais brilhantemente resolutivos que atuem, ainda se tratam de seres humanos com suas humanas vulnerabilidades.
Muitos chegam à exaustão, trabalham sob condições patogênicas sem sequer perceber, desenvolvendo doenças em decorrência dessa identificação insustentavelmente descolada da realidade. Evidente que o comportamento desses líderes irá afetar os que estão à sua volta, imediatamente seus diretos e, inevitavelmente, toda a organização.
Apesar desse potencial “efeito top down” do adoecimento, os membros da alta gestão resistem a admitir a necessidade de reconhecer e tratar de suas questões no mesmo contexto de seus colaboradores, ou seja, onde o mal-estar aflora, suas próprias empresas. Ou até mesmo fora desse ambiente. Estão capturados como portadores simbólicos dos atributos de infalibilidade e eficácia decisória, tornando-se presas de uma auto-idealização da resiliência, antecipação e prontidão para atingir metas, sob a pressão que for, e sem “desmanchar o cabelo”.
Há um limite adicional para que o RH não seja o agente do bem-estar psíquico. É o fato de que a própria liderança do RH é um dos membros da alta gestão. Veja os conflitos colocados. Como um risco psicossocial mapeado pelo líder do RH será atribuível ao comportamento do seu chefe? E dos seus pares? E de si mesmo? Ainda que essas avaliações sejam executadas, mantidas sob sigilo de terceiros e de acesso exclusivo dos avaliados, o que fazer com os resultados?
BEM-ESTAR PSÍQUICO TOP-DOWN
Os limites apontados acima abrem espaço para uma abordagem exclusiva da alta gestão, situando esta não como a causa do mal-estar (que muitas vezes de fato é), mas como indutora de bem-estar psíquico a partir de si, tornando-o um ativo. Um ativo no sentido de gerar ganhos de produtividade, notas positivas de NPS, e-NPS, clima e retenção de talentos. E, claro, evitar perdas com turnover, absenteísmo, presenteísmo, ações trabalhistas, afastamentos médicos e prejuízos com erros e retrabalhos.
Esses efeitos, no entanto, me parecem secundários frente à satisfação que um empresário e suas altas lideranças podem experimentar com um sucesso baseado em bem-estar psíquico, de si e todos à volta.
Mas, para isso, a metodologia e quem o aplica precisam ser neutros e livres de conflitos hierárquicos entre os membros da alta gestão e destes com seus liderados.
Reenfatizo a importância de o dirigente ser o responsável por contratar esse agente neutro e não o RH, pois aquele é o principal emissor da cultura de uma empresa e dos valores que regem comportamentos e relações internas. É quem dita, explícita ou implicitamente, o jeito de estabelecer metas, cobrar resultados, definir prioridade, distribuir reconhecimento, resolver conflitos e enfrentar situações limite com sua diretoria. E são os integrantes desta que vão ser os fiadores dessa cultura e tratar seus diretos à semelhança do que vivenciam com o seu líder.
A premissa orientadora do bem-estar psíquico é que o mesmo seja gestado e experimentado entre os membros da alta gestão e isso, por si só, impacta a saúde mental da organização. Afinal, a vida de dezenas, centenas ou milhares está sujeita a decisões e humores de não mais do que cinco, dez ou no máximo vinte pessoas. E as medidas tomadas por estas altas lideranças são mais decisivas para a cultura, a retenção dos talentos e os resultados do que se pode esperar de muitos programas de treinamento de lideranças e gestão de pessoas. A educação de adultos é algo extremamente necessário na modernidade, mas igualmente difícil.
PSICANÁLISE “CORPORATIVA” VS. A PSICANÁLISE NO CONSULTÓRIO
O objetivo de uma análise é produzir uma escuta transformativa do sujeito e de suas relações a partir de sua fala, incluindo os pensamentos e afetos inconscientes implicados nessas construções. É o que chamamos de “teatro interno” quando atendemos no consultório.
Então, por que um dirigente empresarial contrataria um psicanalista para atuar com ele em sua empresa se pode contratar o psicanalista que quiser de maneira mais discreta e sigilosa? Creio que tenho lugar de fala para responder a isso de três posições. Atendo empresários no consultório, atendo empresários em suas empresas e fui empresário por anos, em muitos dos quais sendo psicanalisado.
O diferencial do trabalho psicanalítico no contexto da empresa é o de poder exercer a escuta com possibilidade de observar essas relações onde elas de fato estão acontecendo e à luz de uma cultura dada. Esse novo dispositivo eu rebatizei de “teatro externo”. O psicanalista explora e interpreta, com o analisante, suas motivações e inibições inconscientes no palco mesmo do seu trabalho.
O processo também é muito facilitado pelo o que entendo ser talvez o maior diferencial da clínica com os empresários, que é o fato de analista e analisante compartilharem o mesmo campo de linguagem.
Em suma, sabemos que quanto mais alta a posição de poder numa empresa, mais isolado se torna seu ocupante, resultando num decréscimo de interlocutores de confiança com quem este possa dividir questões de grande impacto em sua vida-empresa sob a mais restrita confidencialidade.
Ao ser livre de hierarquia e não parte interessada, o psicanalista fica desimpedido de escutar e dar encaminhamento aos dilemas decisórios, ensaios mentais, angústias e afetos relacionados aos temas trazidos pelo analisante-dirigente. Os diferenciais desse psicanalista não são poucos e nem supérfluos. Dizem respeito não apenas a carregar em sua bagagem vivências significativas no mundo corporativo, mas à formação, à configuração do setting analítico e ao manejo clínico especificamente concebidos para este fim.
Fecho o capítulo apresentando o caso que deu origem e nome a essa aplicação da psicanálise para empresários e suas empresas. Trata-se de uma consultoria de redesenho organizacional que eu havia conduzido muito antes da formação em psicanálise. Por isso, achei oportuno revisitar o caso e reescrevê-lo “como se” à época da consultoria eu fosse psicanalista. O que de início era um exercício de aplicação do instrumental analítico ao trabalho de transformação empresarial, se tornou um território no qual venho desde então dedicando todos os esforços.
Espero que a apresentação desse caso seminal permita ao leitor acompanhar os meandros psíquicos tanto dos analisantes em causa quanto do próprio analista que dirige o processo.
Para ficar mais clara a aplicabilidade do que escrevi neste capítulo um, pontuarei entre colchetes os aspectos que caracterizam e o diferenciam esse trabalho “in company” em relação ao trabalho no consultório.
CASO: ROMANCES FAMILIARES S/A.
O núcleo familiar em causa
A empresa, de origem familiar e com mais de oitenta anos de história, tem como administradores a segunda geração: o pai é o presidente; a filha mais nova desempenha junto com a mãe funções de finanças e RH; um dos filhos é responsável pelas exportações e relações institucionais e o outro, gêmeo fraterno, é mais empenhado com tocar a empresa como um todo. Todos os filhos tiveram vivência em outras companhias, ainda que curta, antes de atuarem na empresa da família, pertencente ao ramo têxtil.
A demanda
Ao ser contratado, entendo pela voz dos filhos, sobretudo da filha, que a família não consegue mais dar conta da administração como quando a empresa era de menor porte. O crescimento fez com que novas operações fossem abertas em outros estados e outros países da América Latina, dificultando o acesso direto aos problemas. O filho que cuida das exportações queixa-se demais dos funcionários, mostrando-se bastante crítico em relação àqueles com mais tempo de casa. Acusa-os de não se adiantarem à solução de problemas, de não saberem planejar o dia a dia e menos ainda de serem proativos, criativos, assertivos. O irmão que gere o dia a dia concorda e é ainda mais contundente e feroz na crítica aos funcionários. Embora ambos, paradoxalmente, demonstrem boa dose de complacência com erros e retrabalhos que tais deficiências acarretam.
A mãe exerce um papel meio conciliador, tanto na relação atritosa entre os irmãos, que nesse início de trabalho ainda é discreta, quanto nas relações com as diversas lideranças da organização. O conflito maior que a mãe procura mediar é o que emerge da relação entre o pai e o filho que dá o ritmo ao dia a dia da empresa. Esse ritmo muitas vezes passa por cima das opiniões do pai, assim como dos funcionários. Com seus subordinados, a mãe demonstra ser bastante autoritária e centralizadora. Parece que o filho que toca a operação, espécie de “gerente-geral” espontâneo, insinua-se como aquele que pouco a pouco ocupa a autoridade do pai. Mas tudo isso ainda é muito velado, pois as funções de cada membro da família não são muito demarcadas, havendo muitas sobreposições de funções e conflitos. Fato que fica comprovado em decisões tomadas em reuniões acaloradas pela presença e participação de todos.
O pedido que me chega em uma reunião com todos da família, é para que os ajude a tirar a empresa desse ponto de inflexão, desse estado de erros que começam a se acumular, pois os proprietários não mais conseguem ver tudo o que se passa o tempo todo, em todos os lugares. O reconhecimento dessa limitação mostrou-se um importante ponto de partida, mas insuficiente. A premissa ainda era: “nós sabemos como resolver todos os problemas, apenas nosso saber já não alcança simultaneamente todos os problemas e, para piorar, muitas das lideranças ainda deixam muito a desejar em termos de performance” [Note um sentimento de certa onipotência diante da situação-problema e baixa auto-implicação com a gênese do problemas em si. Uma tendência de projeção para os “outros” a priori].
Autonomia para o quê?
Ao escutar as lideranças que se reportam diretamente aos acionistas vai ficando claro que as relações internas são pautadas pelas ideias e ideais dos proprietários inscritos na tradição oral e que os funcionários têm sim autonomia para desempenhar suas funções, desde que sigam as priorizações dadas pelos proprietários. O grande problema, contudo, é que as prioridades mudam sem prévio aviso diariamente ou até mais de uma vez no mesmo dia. Os porquês das mudanças não são explicitados, pronunciando-se então duas tendências, a saber: 1) As pessoas ali são autônomas apenas para o “fazer” e 2) O poder e saber centrais já não dão conta da complexidade da gestão. A centralização excessiva do poder mostrou seus limites não pela problemática do poder em si, mas do saber. Saber este que além de insuficiente, produz ordens e contraordens por vezes contraditórias aos liderados. A complexidade do ambiente competitivo evidenciou-se como primeiro fator de castração1 daquela cultura de comando e controle “top down”. Agora não é mais a questão de estar longe ou perto do problema, mas de não contar o mesmo conhecimento dos que são especialistas e atuam na junto às demandas problemáticas. As lideranças executivas aspiram por maior autonomia e confiança [A angústia dos dirigentes frente aos desafios não mais controláveis vai se irradiando para os liderados que se reportam diretamente eles]. O que as lideranças executivas poderão fazer com essa autonomia será outro problema.
De volta à cúpula da empresa com esse diagnóstico, fiz então um primeiro ato analítico, bastante selvagem2 talvez, ao informá-la de que o maior entrave para superar o ponto de inflexão estava bem ali, diante dos meus olhos. E que se eles, acionistas, estivessem dispostos a reconhecer seus próprios limites e iniciar um processo de delegação de poderes e responsabilidades aos funcionários, haveria, então, uma possibilidade de transformação daquela cultura organizacional octogenária.
Autonomia do pensar
Uma nova forma de organização deveria ser proposta contemplando com mais clareza os papéis e suas relações de interdependência. A começar pelos membros da cúpula diretiva. Foram definidos os campos de atuação de cada um com os limites de atuação bem delineados. Ficou estabelecido que a cúpula catalisaria, com a força do exemplo, todas as mudanças que esperava implementar na base da pirâmide. E mais, que seria dessa base pirâmide que viria a maior parte das soluções para os novos tempos.
De mãe para filho. Qual filho?
Surge então uma questão: como demonstrar para toda empresa, por meio de exemplos concretos, que o processo de autonomizar as pessoas não é apenas intencional, um belo discursivo? Por que não nomear um novo presidente, uma vez que o pai vem dedicando-se cada mais ao conselho de administração? A essa proposta, a irmã indaga: você sugere que contratemos um profissional de fora? Eu devolvo: é uma questão que só vocês podem responder. A irmã, com o aval do irmão responsável pela exportação e o aceite meio resistente da mãe, indica o outro irmão para ocupar tal posição. O pai não está presente na sala. Foi assim, rápido e prático. É o irmão mais indicado porque afinal já ocupa esse lugar oficiosamente.
O pai e o retorno ao Édipo
Eu fico com a incumbência de levar essa proposta ao pai. Tarefa que não deveria ter aceito, pois me colocou no papel de protagonista de soluções que estavam sendo construídas até aquele momento com a implicação dos membros da família sob a minha, digamos no máximo, coadjuvância. Embora extremamente cético em relação à validade da recomendação que levo até ele, o pai não se opõe à implementação da nova estrutura. Acredita que nenhum dos membros da família ou da empresa está apto a ocupar tal lugar e a empreender tais mudanças. Eu pergunto se alguém trazido de fora junto com outros profissionais daria conta das transformações. Ele também acha que não, daí não objetar, apesar de toda a incredulidade. Um conflito e tanto que tenho dificuldades para compartilhar ao retornar para o grupo com essa aprovação reticente do pai.
A certeza de que nenhum dos filhos será capaz de levar a empresa a um novo e melhor patamar introduz para mim a mais importante reflexão sobre esse trabalho e vai me deixar em alerta em relação a tudo o que vem depois. Um conflito latente estava perto de se manifestar. E iria arrastar atrás de si questões relacionais primitivas dessa família [Muito não-ditos, como é comum em toda família, ganham contornos potencialmente mais dramáticos ao impactar as relações institucionais]. A incredulidade do pai me fez pensar o quanto uma empresa familiar pode impor aos filhos, em menor ou maior grau, uma reedição do complexo de édipo ou, melhor dizendo, o adiamento de sua dissolução. Traduzindo. É na passagem da adolescência para a vida adulta que o sujeito deve renunciar ao desejo de se manter unido aos pais, materialmente ou sob seus ditames, e dar os passos em direção à cultura, fazer suas próprias escolhas de outros objetos, fora do núcleo familiar.
Ingressar na empresa da família, mesmo que após um período de experiência em outras empresas, significa ser reintroduzido no seio familiar para renascer sob os auspícios dos cuidadores originários. A assimetria é clara: o pai com todo o seu saber empresarial continuará exercendo um controle sobre o filho. Este experimentará dificuldades extras, pois, embora adulto, encontrará obstáculos para ter suas hipóteses validadas e reconhecidas. A empresa não seria simbolicamente a mãe a quem o pai tentaria impedir que o filho tomasse de si? Claro que não penso que isso seja um processo consciente, nem livre de ambiguidades e menos ainda um enredo que ocorre em toda empresa familiar. O pai também pode pensar que a empresa é simbolicamente um dos “filhos” através do qual pereniza sua existência no mundo. Prova disso é que esse pai em questão não se opõe à execução do plano. Essa não oposição não equivaleria, ainda que com sinal trocado, a uma aprovação?
A nova estrutura produziu dinâmicas relacionais reveladoras de novos conflitos em todas as instâncias de poder. Vou me ater ao mais significativo deles por trazer mais elementos para me ajudar a pensar psicanaliticamente. O primeiro momento foi de alívio. Finalmente aquilo que circulava como “não dito” agora é assumido. Há um presidente executivo e será a partir de suas definições que a empresa agora se organiza, diminuindo a quantidade de contradições, espera-se. Três funcionários são promovidos a diretores e passam a fazer parte da cúpula. A mãe entende que esse movimento de profissionalização sugere que ela se desligue das funções executivas e faça parte do conselho junto com o pai. Tal medida autentica a posição do filho líder e reforça o processo de profissionalização.
Nenhum dos irmãos será tratado como o pai os tratava.
A travessia do modelo autonomia do fazer para o modelo autonomia do pensar não se deu sem percalços. A tomada do poder por um dos irmãos evocou sentimentos primitivos no outro cujos contornos não difíceis de identificar em Totem e Tabu3 escrito por Freud em 1913. De início o processo decisório se reapresentava como no modelo antigo. Discussões inflamadas que chegavam a um resultado mais ou menos consensual. A presença de três diretores fora da linhagem sanguínea despolarizava um pouco os embates, mas não o suficiente, pois estes eram “crias da casa” e, portanto, familiarizados com aquela dinâmica e impotentes para mudá-la.
Pouco a pouco, a postura do irmão subordinado começa a mudar no sentido de confrontar as decisões do irmão empossado líder. As discussões sobem de tom, não raramente terminando em batidas de porta, gritos e mal-estar que se espalha por toda a empresa [Aqui, pode-se observar o ápice da angústia diante dos conflitos entre o desejo de mudar e as resistências inconscientes para as transformações. A angústia se transforma em sintomas]. Ocupo aquele lugar do “sujeito suposto saber”4 e todos olham para mim com a interrogação: o que fazer? A voz do pai me ronda, não estaria ele certo em relação ao despreparo dos herdeiros?
O conflito central é que os papéis de irmãos, sócios e executivos estão muito embaralhados. A relação de ascendência de um irmão sobre o outro, ainda que em nome de um processo que se deseje estruturante de uma nova ordem de poder, evoca a relação mais primitiva de ambos. Embora gêmeos, o irmão presidente sempre se insinuou como um irmão mais velho, mais forte, replicando um pouco o modelo paterno autoritário sobre o irmão que agora se sente novamente à condição de assujeitamento. Uma trama adormecida que foi atualizada por esse processo.
Entre a liberdade e a segurança
A lei é problemática sempre. Todos a queremos, pois, é a lei que nos protege contra abusos, mas é também ela que cerceia a nossa liberdade. A empresa precisa escrever suas leis, abandonar a transmissão baseada na oralidade, a informalidade e, de certa forma, o paternalismo, sob pena de incorrer em injustiças e mais mal-estar.
Seria preciso que ambos os irmãos se comprometessem com um acordo mínimo de sujeição às leis de conduta no âmbito profissional a que todos devem estar submetidos. Dessa forma toda a organização entenderia que as decisões não mais seriam resultantes de opiniões, simpatias, temperamentos e julgamentos pessoais dos donos, mas orientadas por uma instância simbólica superior compartilhada por todos, sem exceções.
Fácil de produzir compreensão consciente, mas e o inconsciente com isso tudo? Não estava no meu escopo de trabalho fazer a análise dos irmãos, mas não por isso deixo de escutar algo do inconsciente deles e de toda a organização. Se os sintomas muitas vezes são realizações do desejo de maneira distorcida, assim como os sonhos, então estes podem fornecer as pistas para novas formações de compromisso.
Renúncia pulsional
Logo descubro que não se tratava apenas de escrever leis e fazê-las cumprir. Isto foi feito e o resultado foi precário. Por quê? Mais do que leis escritas, eram necessárias leis simbólicas mais amplas. Os operadores dessa lei não são instâncias administrativas e suas funções regulatórias e punitivas. A pulsão pode se conformar temporariamente a um recalcamento e se acomodar em um sintoma, mas continuará a exercer sua força, mesmo à força contrária das leis. O constrangimento que levou o irmão subordinado a buscar um outro destino ao seu desejo foi a chegada de novos diretores contratados de fora da empresa. O poder agora não estava mais nem com o pai, nem com irmão líder, que tendia a uma gestão mais impositiva sobretudo com o irmão. O poder agora estava com os novos talentos, vindos de fora com o saber que qualifica as discussões no âmbito técnico. O novo grupo é a nova lei, mas nenhum de seus membros a detém e a aplica isoladamente. O poder agora é circulante. Nem o irmão líder pode impor suas decisões ao grupo, nem o irmão subordinado pode deixar de cumprir o combinado pelo grupo.
A formação de compromisso foi encontrada pelo irmão subordinado na medida em que foi possível admitir para si, no íntimo, que não aceitava o poder que foi atribuído ao irmão, embora reconhecesse em parte o mérito de sua conduta empresarial. Antes de chegar a essa conclusão, anunciara sua saída da empresa, mas retornara por diversas vezes, ficando impossível deixar de fazer uma associação às avessas com o Fort-da5 formulado por Freud, dinâmica debaixo sob a qual a empresa novamente seria a mãe de quem eu posso me ausentar e para quem posso voltar a qualquer momento.
Ao dividir e tratar isso junto com o irmão presidente, o pai e a mãe, o irmão aceitou o fato de que seria melhor afastar-se do dia a dia como executivo subordinado e posicionar-se como par do irmão, numa espécie de copresidência dedicada a assuntos mais estratégicos e menos operacionais. Foi uma longa jornada, mas foi possível acomodar todas as posições de maneira suficientemente boa, não sem dor, sofrimento, culpa e muita elaboração ao longo de intensas conversas. Mais adiante, o irmão copresidente descobriu que seus desejos iam muito além do que obtinha de satisfação dentro daquele núcleo familiar. Não se tratava apenas de não mais precisar afirmar sua existência com base na disputa de poder com o irmão. Então, uma rota de saída desse núcleo familiar foi programada e efetivada. [Aplicar a técnica psicanalítica com os estes empresários na própria empresa, ainda que neste caso sem grande envolvimento das demais lideranças e colaboradores, foi determinante para poder observar e escutar “ao vivo e em tempo real” o retorno e a elaboração dos desejos e afetos reprimidos em cada um dos personagens dessa trama. Resultado que dificilmente seria alcançado ao se trabalhar com apenas um ou outro no consultório ao longo desse mesmo horizonte de tempo. O impacto na percepção do bem-estar psíquico desde os dirigentes produziu seus efeitos sobre todo o tecido social da organização].
Acredito que o desfecho desse caso demonstra bem o estatuto que Freud atribuiu ao trabalho enquanto motor da nossa conexão com a realidade e a vida social (Mal-estar na Civilização- 1939):
Nenhuma outra técnica de condução da vida liga o indivíduo tão fortemente à realidade como a insistência no trabalho, que ao menos o inclui de forma segura num fragmento da realidade, a comunidade humana. A possibilidade de deslocar para o trabalho profissional e aos vínculos que a ele se enlaçam, uma considerável medida de componentes libidinais, narcisistas, agressivos e até eróticos, lhe confere um caráter indispensável para confirmar e justificar a vida em sociedade.
No total, os três anos desse trabalho culminaram com a fusão dessa empresa com um grupo internacional. A família continuou detendo uma participação no negócio, mas atuando apenas no conselho.
Reflexão final
Foi interessante observar os fenômenos inconscientes se manifestando a plena carga nesta empresa, mesmo que em retrospectiva por meio desse ensaio. O desafio maior para essa empreitada é a falta de tempo e espaço para trazê-los à baila, escutá-los e elaborá-los dentro da agenda empresarial. Só o escutamos, ou melhor, só sentimos os efeitos de suas manifestações, quando acontecimentos extraordinários o precipitam sobre a ordem instalada, desorganizando-a. Esses acontecimentos extraordinários estão se tornando cada vez mais ordinários na contemporaneidade. São revezes causados pelas disrupções da tecnologia, restrições legais, volatilidade das transformações socioculturais entre outros fenômenos que colocam as corporações, mesmo as mais poderosas, em posição de vulnerabilidade, defesa, hesitação, agressão, confrontando-as com os limites e censuras de que nenhuma escapa, ou pelo menos indefinidamente. A era do líder carismático, centralizador e autoritário vem dando lugar aos poucos a um líder mais consciente de suas restrições e, portanto, da sua dependência dos outros para conseguir se haver ou não com toda a complexidade que se lhe apresenta.
Ao começar a fazer questões para o seu inconsciente, o líder pode se ver mais implicado nas queixas que formula e a experimentar uma nova dinâmica nas relações com e entre seus colaboradores. Certamente algo de novo se apresentará. Entender que a realidade é experimentada de maneira singular pelos sujeitos e que estes são regidos por afetos inacessíveis que se presentificam quando em relação, pode ser um ato gerencial eficaz em si. Torna-se possível contar com a liberação, captura e canalização de energias poderosas em qualquer direção, inclusive as mais criativas e produtivas. Seria uma maneira de um empresário ou qualquer profissional em posição de liderança olhar e fazer escolhas ante o princípio de realidade que vem tanto de fora quanto de dentro de suas corporações?
Finalizo com mais uma questão para futura reflexão: são “familiares” apenas as empresas familiares? Quanto da matriz edipiana está operando também nas mais anônimas das sociedades? Uma questão que fica para a nossa “clínica corporativa”.
Ao escrever esse texto, não imaginava que as duas questões colocadas ao final como um jogo de palavras provocativo seriam mais de uma década depois respondidas com um sim: “todas as empresas são familiares” e “mesmo as mais anônimas das sociedades”. Veremos o porquê dos sins no próximo capítulo.
* Em 1909 Freud analisa um fenômeno psíquico comum na infância, no qual a criança cria histórias imaginárias sobre sua origem e seus pais. Esse fenômeno é chamado de romance familiar. À medida que a criança cresce, ela começa a perceber as falhas e limitações dos pais, que antes eram vistos como figuras idealizadas e onipotentes. Isso leva a um certo desencantamento. Como reação a essa desilusão, a criança cria fantasias nas quais seus pais verdadeiros são substituídos por figuras mais nobres, importantes ou poderosas — como reis, heróis ou pessoas famosas. Freud chama isso de uma forma de substituição fantasiada dos pais.
O romance familiar também reflete desejos inconscientes de elevação social, como se a criança dissesse: “meus pais verdadeiros não podem ser essas pessoas comuns; devo ser filho de alguém mais grandioso”. O romance familiar tem uma função psíquica importante: preservar o narcisismo infantil e lidar com as frustrações da realidade.
1 Para a psicanálise a castração é um conceito central, mas muito distante do sentido físico ou literal do termo. Está relacionado ao desenvolvimento e à formação da identidade, especialmente no que diz respeito à sexualidade e às relações com figuras parentais. No menino, surge entre 3 e 6 anos, quando ele desenvolve desejos pela mãe (Complexo de Édipo) e vê o pai como um rival. Ao perceber que a mãe "não tem pênis", ele interpreta isso como uma punição — e teme perder o seu próprio, como se o pai pudesse castrá-lo por seus desejos incestuosos. Esse medo é chamado de angústia de castração. O medo da castração é o que leva a criança a renunciar aos desejos incestuosos. Essa renúncia é fundamental para a internalização da autoridade paterna e para a formação do superego, ou seja, a instância psíquica que regula o comportamento com base em normas e valores.
2 Freud define psicanálise selvagem como o uso imprudente, especialmente fora do contexto do tratamento analítico legítimo. Pessoas que, conhecendo superficialmente a psicanálise, passam a interpretar sonhos, sintomas ou comportamentos dos outros de forma reducionista e muitas vezes invasiva e precipitada e generalizada.
3 Freud propõe que, em tempos pré-históricos, havia uma horda primitiva dominada por um pai tirânico que tomava todas as mulheres para si. Os filhos, desejando essas mulheres e ressentindo-se da dominação, matam o pai. Depois, arrependidos e culpados, eles o simbolicamente "restauram" por meio do totem, um animal sagrado que o representa. Isso dá origem às proibições do incesto e do assassinato, fundamentos da cultura. Freud deixa claro com esse texto que a escritura, a observância e o cumprimento da lei é a única condição para que nenhum dos irmãos cometa com os demais o mesmo abuso que fora cometido pelo pai morto.
4 O conceito “sujeito suposto saber” é do psicanalista francês Jacques Lacan e refere-se à suposição de que o analista detém um saber sobre o desejo ou o inconsciente do analisando. É essa suposição que sustenta o vínculo na análise —ou seja, é porque o paciente supõe que o analista sabe algo sobre ele que a análise pode ocorrer. Lacan mostra que essa suposição não é um erro, mas sim o que torna possível o processo analítico. O analista ocupa, portanto, um lugar simbólico, não por realmente saber, mas por ser suposto como detentor de um saber sobre o sujeito.
5 O "Fort da" em Freud é uma observação importante sobre o surgimento da simbolização e o manejo da ausência. Freud observa um jogo repetitivo feito por seu neto de cerca de 1 ano e meio. O menino arremessava um carretel preso por um barbante para longe de si e dizia "fort" (em alemão, "foi-se" ou "não está mais aqui"). Depois puxava o carretel de volta e dizia "da" ("aqui está"). Freud interpreta esse jogo como uma forma de a criança lidar com a angústia da ausência da mãe, representando simbolicamente sua partida e retorno. Ele percebeu que a criança transforma uma experiência passiva (a perda da mãe) em uma ativa por meio dessa representação lúdica ao brincar com o carretel: ela mesma "faz desaparecer" e "fazer voltar" o objeto. É um passo importante para a constituição do sujeito, pois implica a capacidade de simbolizar a ausência. Esse pequeno jogo infantil tem, portanto, um valor teórico enorme, pois Freud nele vê um embrião da linguagem, da simbolização e da estruturação psíquica.